lunes, 20 de diciembre de 2010

As artimanhas de Scapino - Moliére

Texto adaptado e encenações feitas 18 e 19 de Dezembro, na Cia do Nó, Santo André - SP.
Módulo 3.

I ATO

Cena I
Otávio, Jacinta e Silvestre



OTÁVIO: Meu Deus do céu! Como é que vou sair deste buraco?

SILVESTRE: Por que não pensou nisso antes de se atirar nele? Tenho a pouca sorte de pagar caro pelas maluquices do senhor. Estou vendo se formar, lá longe, uma nuvem de bordoadas, que vai arrebentar é nas minhas costas...

JACINTA: Ora bolas, você nos aborrece com seus sermões fora de hora!

SILVESTRE: E os senhores me aborrecem mais ainda com suas doideiras.

OTÁVIO: Mas que é que eu vou fazer! Que resolução devo tomar! A que meios recorrerei!


Cena II
Scapino, Otávio, Jacinta e Silvestre

SCAPINO: Que é isso, Sr. Otávio? Que é que o senhor tem? Que é que há? Que agitação é essa? O senhor parece inteiramente transtornado...

OTÁVIO: Ah, meu caro Scapino, estou perdido! Estou desesperado! Sou o sujeito mais infeliz do mundo!

SCAPINO: Como?

JACINTA: Então você não sabe de nada?

SCAPINO: Não.

OTÁVIO: Meus pais estão chegando aí com o Sr. Gerôncio, e eles vêm me casar.

SCAPINO: Mas afinal, isso é alguma desgraça?

OTÁVIO: Ai! Você não sabe a causa de minha inquietação.

SCAPINO: Não sei, mas só depende dos senhores que eu saiba imediatamente. Eu sou um camarada consolativo, capaz de me interessar pelas coisas da mocidade...

JACINTA: Ah, Scapino! Se você imaginasse alguma traça, se pudesse dar um jeitinho para livrá-lo dessa aflição, eu... eu acho que ele ficaria lhe devendo mais do que a própria vida.

SCAPINO: Para lhe falar verdade, poucas coisas há que sejam impossíveis para mim, quando resolvo lidar com elas. Certamente ganhei do céu um talento bastante propício à criação dessas graciosidades de espírito, dessas galanterias engenhosas, a que a plebe ignara dá o nome de velhacarias... Posso dizer, sem vaidade, que dificilmente se terá visto um artesão mais hábil em maquinações e enredos, alguém que haja conquistado maior auréola do que eu, nesse nobre ofício... Mas, convenhamos, hoje em dia o merecimento anda muito por baixo. E eu por mim já renunciei a todas essas coisas, por causa de certo aborrecimento, num caso que me aconteceu.

OTÁVIO: Como é? Que caso foi esse, Scapino?

SCAPINO: Uma aventura, em que me encrenquei com a justiça.

JACINTA: Com a justiça?

SCAPINO: É. Tivemos um pequeno desentendimento.

JACINTA: Você e ela?

SCAPINO: Sim. Ela não se comportou lá muito bem comigo, e eu me magoei de tal modo com a ingratidão da sociedade que resolvi não me meter mais em coisa alguma. Chega! Mas não me deixem de contar vossa aventura.

OTÁVIO: Você, Scapino, que há dois meses o Sr. Gerôncio e meus pais fizeram juntos uma viagem, para tratar de certo negócio de interesse comum.

SCAPINO: Sei.

OTÁVIO: E que Leandro e eu ficamos entregues por nossos pais, aos cuidados de Silvestre, e Leandro aos de você.

SCAPINO: Exato. E eu me desempenhei muito bem no meu encargo.

OTÁVIO: Algum tempo depois, Leandro conheceu uma garota artista, apaixonou-se, e...

SCAPINO: Sei disso também.

OTÁVIO: Como nós dois somos grandes amigos, ele me confessou logo esse amor, e me levou a ver a moça. Achei-a bonita, realmente, embora não tanto quanto ele queria que eu achasse. Ela ficou sendo o seu assunto de cada dia. A todo instante Leandro me exaltava sua beleza, sua graça, gabava-lhe o espírito, entrava em êxtase ao me falar de sua conversa... E repetia a menor palavrinha da bem-amada, esforçando-se por torná-la a mais interessante do mundo. Às vezes até se zangava comigo, sabe? Porque eu não me mostrava bastante sensível às coisas que ele ia me contando. E a cada passo censurava minha indiferença às labaredas do amor.

SCAPINO: (à parte) Não vejo aonde ele quer chegar.

OTÁVIO: Um dia, eu fui com ele à casa das pessoas que guardam o objeto dos seus sonhos. Em certa rua afastada, ouvimos partir de uma casa lamentações e soluços. Perguntamos o que era. Entre suspiros, uma mulher nos disse que poderíamos ver lá dentro uma cena tristíssima, passada entre forasteiros, e se não ficássemos comovidos é porque tínhamos coração de pedra.

SCAPINO: (à parte) Que fim terá essa história?

OTÁVIO: Movido pela curiosidade, obriguei Leandro a ver de que se tratava. Entramos numa sala e nos deparamos com uma velha agonizante, assistida por uma mulher que se lastimava e por uma jovem banhada em lágrimas... A mais linda, a mais enternecedora jovem que se possa imaginar!

SCAPINO: Oh!

OTÁVIO: Qualquer outra pessoa pareceria medonha no estado miserável em que ela se encontrava. Mas, mesmo assim, meu caro, ela cintilava em seus mil atrativos, e toda a sua figurinha não eram senão encantos e feitiços!

SCAPINO: Ai, ai, ai, estou sentindo a coisa chegar...

OTÁVIO: Suas lágrimas não eram dessas lágrimas desagradáveis, que desfiguram o semblante. Até para chorar, tinha uma graça comovedora. E a dor que sentia era... A dor mais bonita deste mundo.

SCAPINO: Compreendo.

OTÁVIO: E não houve ninguém que não se derretesse em lágrimas, quando ela, apaixonadamente, se atirou sobre o corpo da agonizante, chamando-a de mamãezinha querida. Não houve ninguém que sentisse a alma transfigurada, ao ver um coração tão nobre!

SCAPINO: É tocante, de fato. E estou vendo que esse coração nobre fez com que o senhor ficasse gostando dela...

OTÁVIO: Oh, Scapino! Até um bruto gostaria dela!

SCAPINO: Claro. Que é que poderia impedir uma coisa dessas?

OTÁVIO: Bem. Depois de algumas palavras, com que procurei suavizar o sofrimento daquela aflita e encantadora jovem, saímos. Aí, perguntei a Leandro que tal lhe parecia a moça. Ele me respondeu, friamente: “É, bonitinha.” Eu fiquei chocado com essa frieza, e não quis revelar o efeito que tamanha beleza havia produzido em minh'alma.

SILVESTRE: (a Otávio) Se o senhor não abreviar a história, nós ficaremos aqui até amanhã. Com licença, vou concluí-la em duas palavras. O coração de meu amo pegou fogo a partir daquele instante. Ele já não saberia mais viver se não consolasse uma desventura tão... simpática. Aí, começou a visitá-la com assiduidade. As visitas foram repelidas pela madrinha, que ganhara a guarda da menina após o falecimento da velha. Eis o nosso amigo desesperado. Ele insiste, implora, inventa maquinações; nada. Ficou sabendo que a moça, embora sem dinheiro e sem proteção, é de boa família. A menos que eles não tivessem um bom motivo para ficarem juntos (gesticula barriga de grávida), suas pretensões não seriam toleradas... E com isso, o amor foi aumentando em proporção às dificuldades. Meu amo começa a refletir, agitá-se, argumenta, pesa os prós e os contras, e pá! Casou-se com a moça há três dias.

SCAPINO: Compreendo.

SILVESTRE: Agora, além disso, imagine o regresso inesperado da mãe dele, que só esperávamos daqui há dois meses; o tio descobrindo o segredo desse casamento; e o outro casamento a que pretendem obrigá-lo com a filha do Sr. Gerôncio – filha de uma segunda mulher, com o qual dizem que o velho se casou em Varginha...

OTÁVIO: E por cima de tudo isso, imagine a miséria em que se encontra essa criaturinha adorável, e eu sem poder dar jeito na situação!

SCAPINO: É só? Mas vocês estão preocupados com uma bobagem dessas? Como se houvesse motivo para tanto susto! Silvestre, você não tem vergonha de se afogar em tão pouca água? Que diabo! Você não é mais uma criança de colo, e ainda não sabe achar em sua cachola, burilar em seu espírito algum plano maroto, um estratagemazinho conveniente para ajustar tais negócios? Arre, diabos levem esse animal! Bem que eu gostaria, em tempos passados, de ter uns velhos assim para enganar. Como lhes passaria lindamente a perna! Eu era deste tamanho assim e já me destacava por mil golpes belíssimos de sutileza!

SILVESTRE: Confesso que a Providência não aquinhoou com esses dotes naturais. Não tenho essa capacidade para me enredar com a justiça...


Cena III
Jacinta, Otávio, Scapino, Silvestre


OTÁVIO: Oh, Scapino, você poderia ser para nós de uma utilidade maravilhosa em todas essas complicações.

SCAPINO: Quem, eu? Fiz juramento solene de nunca mais me meter com a vida de ninguém. Em todo o caso, se me pedirem com muito empenho, quem sabe?...

OTÁVIO: Oh, se basta pedir com empenho para obter o seu auxílio, então eu lhe suplico de todo o meu coração que tome o governo do nosso barco!

SCAPINO: (a Jacinta) E a senhorita, não diz nada?...

JACINTA: Eu estou com Otávio: por tudo que lhe é mais caro no mundo, ajude o nosso amor!

SCAPINO: Sejamos humanos, e deixemo-nos vencer. Está bem, vou me interessar por vocês.

OTÁVIO: Você pode acreditar que...

SCAPINO: Bico fechado. (a Jacinta) Vá-se embora, fique descansada. (a Otávio) E o senhor, prepare-se para enfrentar com firmeza a abordagem de sua mãe.

OTÁVIO: Confesso que já estou tremendo antes da hora. E essa minha timidez natural, que não consigo vencer...

SCAPINO: Pois carece aparentar firmeza ao primeiro choque. Evite que ela perceba sua fraqueza e que se aproveite disso para tratá-lo como a uma criança. Finja mesmo um pouco de atrevimento. Responda com energia a tudo que ela for dizendo.

OTÁVIO: Farei o melhor que puder.

SCAPINO: Agora, experimentemos um pouco, para o senhor se acostumar. Vamos ensaiar o seu papel, e veremos se será bem representado. Atenção: ar resoluto, cabeça erguida, olhar firme!

OTÁVIO: Assim?

SCAPINO: Mais um pouco, ainda.

OTÁVIO: Assim?

SCAPINO: Bem. Agora faça de conta que sou sua mãe, que está chegando, e me responda sem tremedeira, como se fosse a ela própria. “Como é isso, patife! Valdevinos! Filho indigno da mãe que tens! Ousas então aparecer diante de meus olhos, depois da peça infame que me pregaste na minha ausência? É esse o fruto de meu desvelo, malandro? Então é assim que me respeitas? Vamos, vamos! Tens a insolência – canalha! - de te comprometeres sem o consentimento de teus pais, fazendo um casamento clandestino? Responde, maroto, responde! Vamos examinar tuas extraordinárias razões...” Mas que diabo, o senhor ficou apalermado!

OTÁVIO: É, mas até parecia que eu estava diante de minha mãe em carne e osso!

SCAPINO: Ah... Mas justamente por isso é que o senhor não devia ficar como um idiota!

OTÁVIO: Vou criar coragem, Scapino. Vou responder firme!

SCAPINO: De verdade?

OTÁVIO: De verdade!

SCAPINO: Olhe aí sua mãe chegando.

OTÁVIO: Meu Deus do céu, estou frito!

SCAPINO: Olá, Sr. Otávio! Fique aqui, Sr. Otávio! Pronto: fugiu! Pobre diabo! Mas, não deixemos a velha esperar.

SILVESTRE: Que é que eu vou dizer a ela?

SCAPINO: Deixe por minha conta. Basta que você me acompanhe.


Cena VI
Armanda; Scapino e Silvestre, ao fundo

ARMANDA: (julgando estar só) Onde já se viu uma barbaridade dessas?!

SCAPINO: (a Silvestre) Já sabe do caso. E ficou tão preocupada que anda falando sozinha!

ARMANDA: (julgando estar só) Mas que desaforo!

SCAPINO: (a Silvestre) Vamos escutar um bocadinho?

ARMANDA: (julgando estar só) Gostaria de saber o que eles vão me dizer sobre este incrível casamento.

SCAPINO: (à parte) Já pensamos nisso.

ARMANDA: (julgando estar só) Será que vão negar-me a coisa?

SCAPINO: (à parte) Não! Nem pensamos nisso!

ARMANDA: (julgando estar só) E se tentarem justificá-la?

SCAPINO: (à parte) É bem possível.

ARMANDA: (julgando estar só) Irão me distrair com lorotas?

SCAPINO: (à parte) Talvez...

ARMANDA: (julgando estar só) O palavrório deles não adiantará nada.

SCAPINO: (à parte) Veremos...

ARMANDA: (julgando estar só) A mim é que eles não enganam!

SCAPINO: (à parte) Quem sabe?

ARMANDA: (julgando estar só) Saberei botar na cadeia esse patife do meu filho!

SCAPINO: (à parte) Vá esperando.

ARMANDA: (julgando estar só) Quanto ao pândego do Silvestre, dou-lhe muita bordoada!

SILVESTRE: (a Scapino) Está ouvindo? Muito me admirava se ela me esquecesse!

ARMANDA: (percebendo Silvestre) Ah! Ali está ele, o hábil conselheiro de família, o sábio orientador da juventude!

SCAPINO: Oh, Sra. Armanda, que prazer vê-la de volta!

ARMANDA: Bom dia, Scapino. (a Silvestre) Realmente, você cumpriu minhas ordens de maneira estupenda, hein? E meu filho se comportou com a maior sabedoria durante minha ausência, não foi?

SCAPINO: A senhora está passando bem, pelo que vejo?

ARMANDA: Regularmente. (a Silvestre) Você não diz nada, malandro? Não dá um pio?

SCAPINO: Fez boa viagem?

ARMANDA: Oh, esplêndida! Deixa-me xingar em paz, sim?

SCAPINO: A senhora quer xingar?

ARMANDA: Quero xingar, sim.

SCAPINO: Ah! E a quem, Sra. Armanda?

ARMANDA: A esse tipo aí.

SCAPINO: Por quê?

ARMANDA: Você não ouviu falar do que se passou em minha ausência?

SCAPINO: Ouvi falar de umas coisinhas.

ARMANDA: Como? Coisinhas? Uma coisa dessas?

SCAPINO: A senhora não deixa de ter razão.

ARMANDA: Um atrevimento desse tamanho!

SCAPINO: Lá isso é verdade.

ARMANDA: Um filho casar sem consentimento dos pais!

SCAPINO: É, isso não está muito certo, não. Mas eu achava melhor a senhora não fazer barulho...

ARMANDA: Pois eu não sou da sua opinião. Quero barulho até dizer chega. Ora, essa é boa! Então você não acha que tenho motivos para me enfurecer?

SCAPINO: Mas é claro. Eu também me zanguei, quando soube da coisa. E defendi a sua posição, a ponto de ralhar com seu filho. Pergunte a ele que pitos enérgicos eu lhe passei, como o censurei pela falta de respeito a uma mãe de quem devia beijar os pés. Ninguém lhe falaria melhor, nem a senhora mesmo. Mas, que remédio? Acabei cedendo à razão, e reconhecendo que, no fundo, ele não tem tanta culpa quanto parece...

ARMANDA: Que é que está me dizendo? Ele não tem culpa de se casar sem tirte nem guarte com uma ilustre desconhecida?

SCAPINO: Que é que a senhora quer? Foi impelido pelo destino.

ARMANDA: Ah, ah! Essa é ótima! Então um sujeito comete todos os crimes imagináveis, engana, rouba, mata, e no fim é só dizer, como desculpa: fui impelido pelo destino!

SCAPINO: Ora, ora. A senhora está jogando com as minhas palavras. Eu queria dizer apenas que seu filho se viu comprometido fetalmente nesse caso.

ARMANDA: Fatalmente, não é o que quer dizer?

SCAPINO: Não, Sra. Armanda. Fetalmente mesmo.

ARMANDA: E por que se comprometeu?

SCAPINO: Eu gostaria de saber se a senhora mesmo não foi jovem, se naquele tempo não fez também suas bobagens como os outros. Até já ouvi dizer que a senhora era muito atraente e tinha inúmeros pretendentes.

SILVESTRE: (a parte) Mas como ele é esperto!

ARMANDA: Bem, isso é verdade, não nego. Mas nunca fui além dessas brincadeiras. Não chegaria ao extremo de fazer o que ele fez.

SCAPINO: A senhora preferia que ele se deixasse matar? Antes casado que morto.

ARMANDA: (a Silvestre) Foi à força que meu filho se casou?

SILVESTRE: Foi, sim, senhora.

ARMANDA: Então ele devia ter ido imediatamente a um médico especialista que desse fim ao problema.

SCAPINO: É o que ele não devia fazer.

ARMANDA: Assim seria mais fácil. Não haveria casamento nem pensão para pagar.

SCAPINO: Mas o fato está consumado.

ARMANDA: Não está enquanto o bebê não nascer. Ainda há tempo de resolver.

SCAPINO: A senhora não vai resolver coisíssima nenhuma.

ARMANDA: Não vou resolver?

SCAPINO: Não.

ARMANDA: Uai! Então não tenho a meu favor os meus direitos de mãe, e o argumento da coação infligida a meu filho?

SCAPINO: Aí está uma coisa com a qual ele não vai concordar.

ARMANDA: Não vai concordar?

SCAPINO: Não.

ARMANDA: Meu filho?

SCAPINO: Seu filho, sim. A senhora quer forçá-lo a cometer um ato ilícito. Otávio nem sonha com algo dessa ordem. Seria se desmoralizar, mostrando-se indigno de uma mãe como a senhora!

ARMANDA: Não estou ligando a isso.

SCAPINO: Por honra dele e da senhora, é preciso que Otávio diga em público que se casou por espontânea vontade, sendo que apenas posteriormente a isso a menina engravidou. Dá até certo ar de virilidade a seu filho, já que todos pensam que...

ARMANDA: Pois, por minha honra e por honra dele, quero que diga é o contrário.

SCAPINO: O contrário?

ARMANDA: Vai dizer que foi à valentona que o obrigaram a fazer tal coisa.

SCAPINO: Não, tenho certeza de que ele não fará isso.

ARMANDA: Eu o obrigo a fazer.

SCAPINO: Não faz, estou lhe dizendo.

ARMANDA: Faz, ou eu o deserdo.
SCAPINO: Mas eu a conheço, criatura de Deus! A senhora é boa, de nascença.

ARMANDA: Não sou nada boa, e quando é preciso eu sou é má. Vamos acabar com essa conversa, que já está me esquentando o sangue. (a Silvestre) Vá-se embora, malandro; vá procurar meu filho, enquanto eu vou estar com Argante e meu amigo Gerôncio, para desabafar minhas mágoas!

SCAPINO: Senhora Armanda, se eu puder ajudá-la nalguma coisa, é só dar ordens.

ARMANDA: Obrigada. (À PARTE) Ah, se eu tivesse ainda em meus braços a filha que tanto amei, dava a ela toda a minha herança.

Cena V
Scapino, Silvestre

SILVESTRE: Palavra de honra que você é um grande homem! E o negócio vai deslizando macio, hein? O diabo é que o dinheiro azulou, e não temos nem para o sustento. Os credores estão latindo por toda parte, atrás da gente...

SCAPINO: Deixe por minha conta, que a coisa está preparada. Estou apenas cogitando de um sujeito que mereça confiança, para representar um personagem de que eu preciso... Ah, espere aí. Fique firme. Enterre o gorro na cabeça, como um tipo perigoso. Mantenha-se sobre um pé só. Mão na cintura. Lance um olhar feroz. Ande um pouquinho como rei de opereta. Isso! Agora me acompanhe. Sei de uma artimanha para disfarçar sua cara e sua voz.

SILVESTRE: Pelo amor de Deus, não vá me complicar com a Justiça!

SCAPINO: Ora, ora. Vamos partilhar o perigo como dois irmãos. Três anos de galés a mais ou a menos, é muito pouco para deter um coração nobre!
























II ATO

Cena I
Gerôncio, Argante

GERÔNCIO: É, com um tempo desses, nosso pessoal hoje deve estar aqui. O motorista de um ônibus chegado de Varginha me disse que vira meu empregado prestas a embarcar. O diabo é que, ao chegar, minha filha vai encontrar as coisas bem atrapalhadas com relação ao nosso projeto. O que o senhor acaba de me contar a respeito de Otávio, então, desmancha completamente tudo aquilo que tínhamos preparado!

ARGANTE: Não se preocupe. Minha esposa se comprometeu a remover o obstáculo, agirá imediatamente.

GERÔNCIO: Permite que lhe diga uma coisa, Sr. Argante? A educação dos filhos é uma dessas responsabilidades para quais todo desvelo é pouco...

ARGANTE: Sem dúvida. Mas... A que propósito vem isso?

GERÔNCIO: Vem a propósito dessas loucuras de rapazes, que na maioria das vezes são fruto da má educação que os pais lhes deram.

ARGANTE: Sim, isso acontece uma vez ou outra. Mas que é que o senhor quer dizer com isso, hein?

GERÔNCIO: Que é que eu quero dizer com isso?

ARGANTE: Sim.

GERÔNCIO: Que se o amigo, como bom pai, juntamente com sua esposa houvessem exemplado convenientemente o vosso filho, por certo não lhes pregaria ele a peça que pregou.

ARGANTE: Muito bem. De maneira, então, que o amigo exemplou muito bem o seu, não é?

GERÔNCIO: Claro. E muito aborrecido ficaria eu se ele me fizesse uma barbaridade dessa.

ARGANTE: E se esse filho que o senhor exemplou de maneira tão cabal fizesse pior ainda que o meu? Hein?

GERÔNCIO: Como?

ARGANTE: Como?

GERÔNCIO: Que é que o senhor está querendo dizer com isso?

ARGANTE: Quero dizer, meu caro Sr. Gerôncio, que não devemos ter muita afobação em condenar o procedimento alheio. Quem gosta de censurar os outros, é bom mirar-se antes no espelho de sua casa...

GERÔNCIO: Este enigma eu não entendo.

ARGANTE: Será explicado.
GERÔNCIO: O senhor ouviu dizer alguma coisa a respeito de meu filho?

ARGANTE: Quem sabe?

GERÔNCIO: Mas o quê, então?

ARGANTE: Seu criado Scapino, diante do aborrecimento de minha esposa, só contou a proeza por alto. Pergunte a ele ou a uma pessoa qualquer. Com licença. Vou correndo porque minha esposa mandou-me consultar um advogado para cuidar dos truques que teremos de pôr em prática. Até breve!



Cena II
Gerôncio, Leandro

GERÔNCIO: (só) Que negócio será esse? Pior ainda que o dele! Eu cá não imagino nada pior. Engravidar a menina e casar sem consentimento dos pais, faça-me o favor, não há falta mais grave. Ah, você está aí!

LEANDRO: (correndo em direção a Gerôncio, para abraçá-lo) Oh, papai, que alegria vê-lo de volta!

GERÔNCIO: (esquivando-se ao abraço) Vamos tratar do assunto.

LEANDRO: Deixe que eu o abrace, e...

GERÔNCIO: (repelindo-o novamente) Calma.

LEANDRO: Como? O senhor não permite que eu lhe manifeste minha emoção por meio de um abraço, papai?

GERÔNCIO: Não. Temos um assunto a esclarecer.

LEANDRO: O quê?

GERÔNCIO: Componha-se. Desejo olhá-lo de frente.

LEANDRO: Como?

GERÔNCIO: Faça o obséquio de me encarar.

LEANDRO: E então?

GERÔNCIO: Que foi, afinal, que se passou aqui?

LEANDRO: Que foi que se passou?

GERÔNCIO: Sim. Que é que o senhor andou fazendo na minha ausência?

LEANDRO: Que é que o senhor queria que eu fizesse, papai?

GERÔNCIO: Eu não quero nada. Pergunto o que é que o senhor fez.

LEANDRO: Eu? Nada que lhe desse motivo para se zangar.

GERÔNCIO: Nada?

LEANDRO: Nada.

GERÔNCIO: Mas é o senhor é mesmo topetudo, hein?

LEANDRO: Estou seguro de minha inocência.

GERÔNCIO: Pois Scapino me contou as novidades.

LEANDRO: Scapino!?

GERÔNCIO: Ah, ah! Ficou vermelho ao ouvir esse nome, hein?

LEANDRO: Scapino disse alguma coisa a meu respeito?

GERÔNCIO: O lugar não é próprio para liquidarmos este assunto. Vamos discuti-lo noutra parte. Vá para casa. Eu estarei lá daqui a pouco. Ah, traidor! Queres desonrar-me? Pois eu te renegarei como filho, e é melhor mesmo que sumas de minha presença para sempre!



Cena III
Otávio, Scapino, Leandro

LEANDRO: (só) Me trair dessa maneira! Um malandro que, por quinhentas razões, devia ser o primeiro a guardar os segredos que lhe confio, vai correndo contar tudo a meu pai! Ah, mas eu juro que esta ele me paga!

OTÁVIO: Meu caro Scapino, até nem sei quanto devo à sua dedicação! Que sujeito fabuloso é você! E como o céu foi camarada, enviando você para me socorrer!

LEANDRO: Ah, você está aí? Prazer em vê-lo, seu grandíssimo patife!

SCAPINO: Criado às ordens, meu senhor. É demasiada a honra que o senhor me concede.

LEANDRO: (levando a mão à espada) Está se fazendo de engraçadinho, não é? Pois eu o ensino, ouviu?

SCAPINO: (ajoelhando-se) Meu senhor!

OTÁVIO: (interpondo-se, para impedir que Leandro ataque Scapino) Não faça isso, Leandro!

LEANDRO: Largue, Otávio, largue! Não me segure!

SCAPINO: (a Leandro) Senhor Leandro!

OTÁVIO: (segurando Leandro) Por favor!
LEANDRO: (tentando bater em Scapino) Deixe eu saciar minha raiva!

OTÁVIO: Pela nossa amizade, Leandro, não maltrate o coitado!

SCAPINO: Mas que foi que eu lhe fiz, meu senhor?

LEANDRO: (tentando agredir Scapino) Que foi que você me fez, canalha?

OTÁVIO: (sempre segurando Leandro) Oh, vamos com calma!

LEANDRO: Não, Otávio! Faço questão que ele confesse, e já, a safadeza que me fez. Sim, miserável, eu sei da peça que você me pregou. Acabaram de me contar. Certamente você não imagina que alguém me revelasse o segredo. Mas quero ouvir a confissão de sua própria boca, ouviu? Do contrário, eu lhe furo a barriga com esta espada, está escutando?

SCAPINO: O senhor teria coragem de fazer uma coisa dessas?!

LEANDRO: Pois então, fale!

SCAPINO: Eu lhe fiz alguma coisa, meu senhor?

LEANDRO: Fez, tipo à toa! E sua consciência sabe perfeitamente de que se trata.

SCAPINO: Juro que não sei!

LEANDRO: (avançando para atacar Scapino) Ah, não sabe, hein?

OTÁVIO: (segurando Leandro) Leandro!

SCAPINO: Está bem, meu senhor! Já que o senhor exige, confesso que bebi com os amigos aquele pipote de vinho Xerez, que lhe deram de presente há dias... fiz um furinho no pipote, e derramei água no chão, para fazer acreditar que o vinho tinha se escapado...

LEANDRO: Ah, então foi você, seu sem-vergonha, que acabou com o meu Xerez? E eu que xinguei tanto a criada, pensando que ela é que me fizera essa maroteira!

SCAPINO: Fui eu, sim senhor. Me perdoe!

LEANDRO: Fico muito satisfeito por saber disso. Mas não é esse o caso, não.

SCAPINO: Não é esse, meu senhor?

LEANDRO: Não. É outro que me interessa mais de perto, e você tem de confessar tudo.

SCAPINO: Meu senhor, não me lembro de ter feito mais nada!

LEANDRO: (tentando agredir Scapino) Não vai falar?

SCAPINO: Ai! Ai!

OTÁVIO: (segurando Leandro) Calma! Calma!

SCAPINO: Ah, é mesmo!... Há três semanas o senhor me mandou levar um reloginho àquela moça artista, sua namorada... Eu voltei para casa com a roupa enlameada, o rosto cheio de sangue... e lhe contei que no caminho uns ladrões me deram uma surra e me roubaram o relógio! Fui eu que fiquei com ele, meu senhor!

LEANDRO: Então foi você que ficou com o relógio?

SCAPINO: Foi, sim senhor. Para ver as horas!

LEANDRO: Muito bem! Estou sabendo de boas! Criado fiel é este meu! Mas não é isso ainda que eu estou perguntando.

SCAPINO: Não é isso?

LEANDRO: Não, atrevido! É outra coisa, que eu exijo que você me confesse.

SCAPINO: (à parte) Puxa!

LEANDRO: Vá falando, que estou com pressa.

SCAPINO: Meu senhor, eu já esvaziei a alma...

LEANDRO: (tentando agredir Scapino) Esvaziou, não é?!

OTÁVIO: (passando a frente de Leandro) Mas que é isso?!

SCAPINO: Está bem, meu senhor, está bem. Lembra-se daquele lobisomem que certa noite, há uns seis meses, lhe deu uma surra? E o senhor quase ia esticando a canela, ao cair num fosso quando fugia?...

LEANDRO: E daí?

SCAPINO: Daí, era eu que fingia de lobisomem!

LEANDRO: Era você, canalha, era você o lobisomem!

SCAPINO: Era, sim senhor. Mas só para lhe passar susto. E para lhe tirar o hábito de expulsar a gente de casa, todas as noites...

LEANDRO: Saberei me recordar, no devido tempo, de tudo que você me contou. Mas vamos ao positivo. Você tem de me confessar o que disse a meu pai!

SCAPINO: O que eu disse a seu pai?!

LEANDRO: Sim, cachorro, a meu pai!

SCAPINO: Mas eu nem sequer pus os olhos no senhor Gerôncio, depois que ele voltou!

LEANDRO: Não pôs os olhos?

SCAPINO: Absolutamente!

LEANDRO: Você tem certeza disso?

SCAPINO: Completa. Ele mesmo lhe dirá isso, o senhor vai ver.

LEANDRO: Pois foi ele mesmo que me contou!

SCAPINO: Desculpe, mas... é mentira!


Cena IV
Zerbineta, Scapino, Leandro, Otávio

ZERBINETA: Leandro, me abrace, por favor, querido.

LEANDRO: O que foi? Desabafe, meu amor, a causa do seu pranto.

ZERBINETA: Tenho uma notícia muito desagradável ao seu coração.

LEANDRO: Hein?

ZERBINETA: Eu vou embora para a capital.

LEANDRO: Como? Não pode. Ai, meu coração se parte ao meio.

ZERBINETA: Você bem sabe que meu grupo de teatro aqui da cidade vem passando por sérias dificuldades e não possui patrocínio algum.

LEANDRO: Sei.

ZERBINETA: E que não estamos mais conseguindo nos manter aqui.

LEANDRO: Sei também.

ZERBINETA: Acontece que recebemos há pouco uma proposta de trabalho da capital. Deram-nos duas horas para darmos uma resposta e, a menos que não consigamos uma boa quantia em dinheiro neste tempo, precisaremos aceitar o tão indesejado trabalho.

LEANDRO: Mas que coisa horrível! E então?

ZERBINETA: Temos duas horas ou eu parto para sempre.

LEANDRO: Não, minha amada, você fica.

ZERBINETA: É aí que você entra.

LEANDRO: Eu? Como?

ZERBINETA: Prove o seu amor me dando o tal dinheiro.

LEANDRO: Eu?

ZERBINETA: Sim, sim, você. Ou não me ama como diz?
LEANDRO: Sim, sim, amo... Duas horas... Vejamos...

SCAPINO (à parte): Sinto que precisará dos meus serviços.

LEANDRO (à Scapino): Scapino.

SCAPINO: Eu?!

LEANDRO: Ah, meu caro Scapino!

SCAPINO: (levantando-se, e passando com ar soberbo diante de Leandro) Ah, meu caro Scapino! Agora que precisa de mim, sou seu caro Scapino?

LEANDRO: Ora, eu perdôo tudo isso que você acaba de me contar, e mais ainda que você tenha feito!

SCAPINO: Não, senhor. Não me perdoe coisa alguma. Vamos, fure minha barriga com essa espada!

LEANDRO: Nunca. Suplico-lhe antes que me dê vida, servindo ao meu amor!

SCAPINO: Nada disso. É melhor o senhor me matar.

LEANDRO: Você é demasiado precioso para mim! Tenha paciência, empregue a meu favor esse seu espírito admirável, que vence todos os obstáculos!

SCAPINO: Não. Mate, estou lhe pedindo.

LEANDRO: Ah, pelo amor de Deus, não pense mais nessas coisas! Pense antes em me proporcionar a ajuda que lhe peço!

OTÁVIO: Scapino, você precisa fazer alguma coisa por ele...

SCAPINO: Eu?! Depois de uma humilhação dessas?

LEANDRO: Eu lhe suplico, Scapino! Esqueça meu arrebatamento! Me ajuda com sua habilidade!

OTÁVIO: Eu também lhe peço a mesma coisa.

SCAPINO: Esses insultos ficarão guardados aqui dentro.

OTÁVIO: Você devia abafar seu ressentimento, Scapino.

LEANDRO: Você teria coragem de me abandonar, Scapino, na situação horrorosa em que se encontra o meu amor?

SCAPINO: Vir aqui me fazer uma ofensa dessa natureza!

LEANDRO: É, eu fiz mal, confesso...

SCAPINO: Me xingar de cachorro! De canalha! De sem-vergonha!

LEANDRO: Estou arrependidíssimo, Scapino!
SCAPINO: Querer me furar a barriga com a espada!

LEANDRO: Me perdoe, peço-lhe com toda a humildade! Se for preciso ajoelhar aos seus pés, aqui estou, para lhe implorar mais uma vez que não me abandone!

OTÁVIO: Francamente, Scapino! Você tem de ceder, depois disso.

SCAPINO: Levanta-se. E de outra vez, não seja tão impetuoso.

LEANDRO: Você promete me ajudar?

SCAPINO: Vou pensar nisso.

LEANDRO: Mas o tempo voa, Scapino!

SCAPINO: Não se aflija. De quanto é que está precisando?

LEANDRO: Quinhentos escudos.

SCAPINO: E o senhor.

OTÁVIO: Duzentas pistolas. Para fugir com Jacinta.

SCAPINO: Vou arrancar esse dinheiro de seus pais. (a Otávio) Para os seus pais, o golpe já está preparado. (a Leandro) Quando ao seu velho, embora ele seja o rei dos avarentos, não vai ser preciso muita cerimônia. O senhor sabe que, em matéria de inteligência, graças a Deus ele não tem grande sortimento; é desses que acreditam em qualquer besteira. Não se ofenda com isso: entre o senhor e ele, não há nem sombra de semelhança... E o senhor sabe bem da opinião geral, de que ele só é seu pai... pró forma.

LEANDRO: Isso também, não!

SCAPINO: Ora, ora! Como se tivesse alguma importância! Está caçoando, não é? Mas aí vem os pais de Otávio. Comecemos por eles, já que chegaram primeiro. Vão- se embora os dois. (a Otávio) Diga a Silvestre que venha depressa desempenhar o seu papel.


Cena V
Armanda, Argante, Scapino

SCAPINO: (a parte) Lá estão eles, ruminando!

ARMANDA: (Supondo-se sozinha) Mas que falta de juízo e que falta de consideração! Deixar-se arrastar a um compromisso desses! Que mocidade maluca!

SCAPINO: Senhora Armanda, seu servidor!

ARGANTE: Bom dia, Scapino.

SCAPINO: Estão matutando no caso de vosso filho?

ARGANTE: Confesso a você que isso me dói tanto!
SCAPINO: Senhor Argante, essa vida é mesmo um tapete de aborrecimentos. Meus senhores, carece a gente estar sempre preparado para eles. Nunca me esqueci de umas palavras dos antigos, que ouvi há muitos anos...

ARGANTE: Qual é?

SCAPINO: Mesmo que fique muito pouco tempo longe de casa, a pessoa deve passar em revista, na imaginação, todos os fatos desagradáveis que poderá encontrar na volta. Suponha a casa incendiada, o dinheiro roubado, um filho morto, outro aleijado; e aquilo que ela verificar que não aconteceu, dê graças à boa sorte. Eu cá sempre tive presente essa lição, em minha pobre filosofia. Nunca voltei para casa sem esperar a cólera de meus patrões, censuras, injúrias, pontapés no traseiro, bordoadas, correadas... E o que deixou de acontecer, eu agradeço à minha boa sorte.

ARMANDA: Está certo. Mas essa união absurda vem atrapalhar a outra que queríamos fazer, e isso eu não posso tolerar. Acabei de consultar uns médicos que darão conta do serviço e meu marido foi ter com advogados para anular o casamento.

SCAPINO: Pois olhe, Sra. Armanda, se lhe mereço confiança, trate de arranjar as coisas de outro jeito qualquer. Bem sabe o que são processos nesta terra, e que sua outra atitude não é lá muito bem vista perante a justiça. A senhora vai se meter em camisa de onze varas.

ARGANTE: Tem razão. Sabemos perfeitamente, mas que remédio?

SCAPINO: Acho que arranjei um. Tive tanta pena do vosso sofrimento, que me animei em procurar na cachola algum meio de tranqüilizá-lo. É uma coisa que meu coração não agüenta: ver pais amorosos angustiando-se pelos filhos. E eu sempre tive pelos senhores uma simpatia especial...

ARGANTE: Muito obrigado!

SCAPINO: Fui, pois, procurar o irmão da moça que se casou com vosso filho. É um desses valentões profissionais, que resolvem tudo a golpes de espada, e só pensam em quebrar as costelas do próximo. Para eles, tanto faz liquidar um cristão como engolir um copo de vinho. Conversei sobre o casamento, e fiz ver como era fácil anulá-lo sob alegação de violência. Lembrei as prerrogativas de que os senhores gozam como pais, e o apoio que lhe dariam perante a justiça tanto o vosso direito como o vosso dinheiro e as vossas amizades. Enfim, mostrei-lhe tantos aspectos do negócio, que ele acabou aceitando minha sugestão de se liquidar o caso mediante certa quantia. Concorda em desfazer o casamento, desde que os senhores lhe dêem dinheiro.

ARGANTE: E quanto é que ele pediu?

SCAPINO: Oh! A princípio, coisas astronômicas...

ARGANTE: Mas quanto?

SCAPINO: Coisas malucas.

ARGANTE: Diga, diga!

SCAPINO: Nada menos que quinhentas ou seiscentas pistolas.

ARMANDA: Quinhentas ou seiscentas diarréias que liquidem com aquele desgraçado! Está zombando da gente?
SCAPINO: Foi o que eu disse a ele. Repeli para bem longe semelhante proposta, e fi-lo compreender que os senhores não são tão idiotas assim para lhes pedirem quinhentas ou seiscentas pistolas. Enfim, depois de muita conversa, eis o resultado de nossa conferência. Ele me disse assim: “Chegou a hora de me alistar no exército. Estou tratando de me equipar. Tenho tanta necessidade de dinheiro que, muito contra a vontade, me vejo coagido a aceitar a proposta. Preciso de um cavalo de serviço, e não se consegue um, assim, assim, por menos de sessentas pistolas.”

ARGANTE: Bem, sessenta pistolas nós damos.

SCAPINO: Carece também de arreios e de umas garruchas. Ponhamos mais vinte pistolas.

ARGANTE: Vinte pistolas mais sessenta pistolas são oitenta!

SCAPINO: Justamente.

ARMANDA: É muito! Mas vá lá, concordamos.

SCAPINO: Carece também de um cavalinho para o criado... Trinta pistolas.

ARMANDA: Oh diacho! Mas que é isso? Ele que vá pro inferno. Não recebe nada!

SCAPINO: Senhora Armanda!

ARMANDA: Nada! É um tratante!

SCAPINO: Quer que o criado dele ande a pé?

ARMANDA: Ande como quiser, e o patrão também.

SCAPINO: Santo Deus! Fazer um cavalo de batalha de tão pouco! Não queira demandar, Senhora Armanda. Dê tudo, para não cair na mão da Justiça...

ARGANTE: Está bem, está bem. Podemos dar mais essas trinta pistolas.

SCAPINO: Ele me disse assim: “Preciso também de um macho, para carregar...”

ARMANDA: O quê?! Vá para o diabo que o carregue, com seu macho! Não faltava mais nada! Não, iremos aos tribunais.

SCAPINO: Por favor, Senhora Armanda!

ARMANDA: Não! Não dou coisíssima nenhuma!

SCAPINO: Mas, Senhora Armanda, uma machinho à toa...

ARMANDA: Não dou nem um burro!

SCAPINO: Reflita...

ARMANDA: Não! Prefiro demandar.

SCAPINO: Oh, senhora, que é que está dizendo? Sabe em que é que vai se meter? Passei os olhos pelos labirintos da Justiça. Veja só quantas instâncias e graus de jurisdição; quantos processos embaraçosos; quantas aves de rapina cujas garras terá de experimentar, quantos merinhos, procuradores, advogados, escrivães, substitutos, relatores, juízes e escreventes! Não há uma só entre todas essas pessoas que, por uma ninharia, deixe de dar um pontapé no direito mais líquido deste mundo. O meirinho certificará a efetivação de qualquer diligência imaginária, em virtude da qual o senhores serão condenados sem saberem porquê. Seu procurador se entenderá com a parte contrária, e o venderá por bons cobrinhos. Seu advogado, também sensível ao suborno, estará ausente quando a causa for julgada, ou produzirá razões que serão pura conversa fiada, fugindo à matéria. O escrivão lavrará sentenças e mandados de prisão contra os senhores, por contumácia. O escrevente substituirá peças dos autos, e o próprio relator ficará na moita sobre o que viu lá dentro. E mesmo que, com as maiores cautelas deste mundo, os senhores se precavenham contra tudo isso, ficarão bestificados ao verem que os juízes foram cabalados pela beataria ou pelos amantes. Ah, Senhora Armanda, se for possível, livre-se desse inferno! Porque uma demanda é o mesmo que o inferno em vida. Só de imaginar um processo, eu era capaz de fugir para as Índias...

ARGANTE: Quanto é que ele quer para o macho?

SCAPINO: Para o macho, para os dois cavalos, para os arreios e para as garruchas, e para pagar umas porcariinhas que deve à dona da hospedaria, pede ao todo duzentas pistolas.

ARMANDA: Duzentas pistolas?!

SCAPINO: É.

ARMANDA: (andando, com raiva) Bem, bem. Iremos demandar.

ARGANTE: Vamos refletir um bocadinho...

ARMANDA: Vou demandar.

SCAPINO: Não se arrisque...

ARMANDA: Vou demandar.

SCAPINO: Mas para demandar é preciso dinheiro. Os senhores vão precisar dele para notificações. Vão precisar para registro. Vão precisar para procuração, para distribuição, para pareceres do Ministério Público, perícias e emolumentos do procurador-geral. Vão precisar para o pronunciamento dos auditores, para o direito de retirar o saco dos autos, e para certidões. Vão precisar para relatórios dos substitutos, gorjetas, diligências de oficiais de justiça, despachos interlocutórios, sentenças, mandados, custas, reconhecimento de firmas e traslados feitos pelos escreventes, sem falar nos “agradinhos” que terão de oferecer! Dêem o dinheiro a esse camarada, e ficarão livres de aperreações.

ARGANTE: O quê?! Duzentas pistolas?

SCAPINO: Sim, senhor. E sairão lucrando. Fiz um calculozinho das despesas com a justiça, e verifiquei que, dando duzentas pistolas a esse tipo, os senhores economizam pelo menos umas cento e cinqüenta. Sem contar preocupações, canseiras e aborrecimentos de que se pouparão. Mesmo que tivessem de agüentar apenas as besteiras que esses perversos advogados costumam falar diante de todo mundo, eu preferiria mil vezes dar trezentas pistolas a demandar!

ARMANDA: Não estou ligando a isso, e desafio os advogados a dizerem o que quiserem contra mim.

SCAPINO: Bem, a senhora fará o que for de seu gosto. Eu, na sua pele, fugiria dos tribunais...

ARMANDA: Não dou as duzentas pistolas.

SCAPINO: Aí vem o homem de quem estávamos falando!


Cena VI
Argante, Armanda, Scapino e Silvestre

SILVESTRE: Scapino, quero que me mostre esses diabos desses pais de Otávio!

SCAPINO: Para quê, senhor?

SILVESTRE: Soube agora mesmo que eles querem me processar, anular o casamento de minha irmã e impedir que venha ao mundo meu sobrinho favorito!

SCAPINO: Se têm essa ideia, não sei. Sei que não estão dispostos a dar as duzentas pistolas. Acham demais.

SILVESTRE: Pelas tripas de Satanás! Se esbarro com eles, quebro-lhes a espinha, ainda que eu tenha depois de ser esfolado vivo. (para não serem vistos, Armanda e Argante colocam-se, tremendo, por trás de Scapino)

SCAPINO: Meu caro, os pais de Otávio são um casal valente como as armas, e talvez não tenham medo do senhor...

SILVESTRE: Quem? Eles? Pelos chifres de Belzebu! Estivessem aqui e eu lhes enterrava logo a espada na barriga! (Avistando Armanda e Argante) Quem são esses sujeitos aí?

SCAPINO: Não são eles não senhor, não são eles não!

SILVESTRE: Serão amigos deles?

SCAPINO: Também não. Pelo contrário: são os maiores inimigos deles!

SILVESTRE: Os maiores inimigos?

SCAPINO: Sim.

SILVESTRE: Ô diabo, que beleza. (a Argante e Armanda) Então, os senhores são inimigos daquele casal patife, hein?

SCAPINO: São, sim. Garanto!

SILVESTRE: (apertando rudemente as mãos de Armanda e Argante) Pois então, toquem. Dou-lhes minha palavra, juro por minha honra, por esta espada que eu porto, juro por todos os santos e todos os demônios que eu seja capaz de imaginar: antes que o sol se ponha, livrarei-vos, meus amigos, desses miseráveis, desses refinadíssimos pulhas! Confiem aqui neste braço.

SCAPINO: Olhe lá: aqui nesta terra não se admitem violências, hein?

SILVESTRE: Ora, pouco me importa. Não tenho nada a perder!

SCAPINO: Na certa a Senhora Armanda e o Senhor Argante se defenderão. Eles têm parentes, têm amigos e criados, e se valerão deles contra a sua fúria.

SILVESTRE: Isso é que eu quero, pelos cascos de Lúcifer! Isso é que eu quero! (desembainhando a espada) Pelo olho esquerdo do Capa-Preta! Que pena eles não estarem aqui neste momento, com todos os seus guarda-costas! Por que diabo eles não saltam à minha frente rodeados por trinta homens! Por que é que eles não caem sobre mim, de armas em punho? (pondo-se em guarda) Como é? Vocês têm o atrevimento de me atacar, marotos?! Vamos lá, você aí, mate! (dando golpes por todos os lados, como se combatesse muitas pessoas) Não darei quartel! Encaixemos! Para a frente! Pé firme, olho vivo! Ah, malandros! Ah, canalhas! Estão querendo, não é? Pois tomem até dizer chega! Aguentem, poltrões, aguentem firme! Vamos! Mais uma estocada! Outra! (voltando-se para o lado de Argante, Armanda e Scapino) Como, vocês recuam? Pé firme, ventre de sapo do inferno!

SCAPINO: Ai, ai, ai! Nós não estamos no barulho, não, senhor!

SILVESTRE: Isto lhe ensinará a zombar de mim, ouviu? (afasta-se)

SCAPINO: Então, viu quanta gente morta por causa de duzentas pistolas? Vamos, desejo-lhes sorte!

ARMANDA: (Armanda e Argante tremem de pavor) Scapino!

SCAPINO: Chamou?

ARGANTE: Resolvemos dar as duzentas pistolas.

SCAPINO: Que bom! Pelos senhores mesmo, entendem?

ARMANDA: Vamos procurar o homem. Tenho o dinheiro comigo.

SCAPINO: É melhor que me dê isso. Não fica bem à vossa dignidade os senhores irem ter com tal tipo. Além disso, tenho medo de que ele se lembre de exigir mais ainda, se os senhores se derem a conhecer...

ARGANTE: É, mas eu gostaria tanto de ver para onde vai o nosso dinheirinho...

SCAPINO: Será que os senhores desconfiam de mim?

ARGANTE: Nós não! Mas você compreende...

SCAPINO: Venha cá, senhor Argante. De duas, uma: ou eu sou um velhaco ou sou um homem de bem. Pensam que eu queria enganá-los, que em tudo isso eu tenho outro qualquer interessem além do vosso e o do meu amo, a quem os senhores pretendem ligar-se? Se suspeitam de mim, não me meto em mais nada, e a única coisa que os senhores têm a fazer é procurar neste momento mesmo quem lhes arranje os negócios.

ARGANTE: Então, tome!

SCAPINO: Não, senhor. Não me confie o vosso dinheiro. É um favor que me presta, se recorrer a outro qualquer.

ARMANDA: Santo Deus! Tome, tome!

SCAPINO: Não, já lhes disse, não confiem em mim. Sabe lá se estou querendo surripiar o vosso dinheiro?

ARMANDA: Tome!, digo-lhe eu. Vai me obrigar a insistir toda a vida?

ARGANTE: Mas... cuidado com o tipo, hein?

SCAPINO: Deixem por minha conta. Ele não está lidando com um bobo.

ARGANTE: Vamos esperar você lá em casa.

SCAPINO: Irei sem falta. (Só) Estes já estão no papo. Agora, é só procurar o outro. Ah, sim senhor, aí está ele. Até parece que o céu encaminhou os dois para a minha arapuca!


Cena VII
Gerôncio, Scapino

SCAPINO: (fingindo não ver Gerôncio) Oh, céus! Mas que desgraça imprevista! Oh, mísero pai! Infeliz Gerôncio, que irás fazer?

GERÔNCIO: Que é que ele está dizendo a meu respeito com essa cara de enterro?

SCAPINO: Não há ninguém por aí que possa me informar onde está o Senhor Gerôncio?

GERÔNCIO: Que é que há, Scapino?

SCAPINO: (correndo, sem querer ouvir nem ver Gerôncio) Onde é que poderei encontrá-lo para lhe contar toda essa desgraça?

GERÔNCIO: (correndo atrás de Scapino) Mas que é, afinal?

SCAPINO: Corro por toda parte, à procura dele, e nada!

GERÔNCIO: Estou aqui, Scapino!

SCAPINO: Deve estar escondido em algum lugar que ninguém sabe...

GERÔNCIO: (fazendo-o parar) Escute aqui: você está cego?

SCAPINO: Oh, senhor, não havia meio de encontrá-lo!

GERÔNCIO: Há uma hora que eu estou diante de você. Que é que há, posso saber?

SCAPINO: Senhor Gerôncio...

GERÔNCIO: Diga, diga,

SCAPINO: O senhor seu filho...

GERÔNCIO: Está bem, meu filho...?

SCAPINO: Foi vítima da desgraça mais esquisita deste mundo!

GERÔNCIO: Qual é?

SCAPINO: Encontrei-o há algumas horas, magoadíssimo com qualquer coisa que o senhor lhe disse, e em que, por sinal, o senhor me meteu sem nenhuma razão. Procurei distraí-lo, e fomos passear pelo porto.

GERÔNCIO: Nós temos um porto...?

SCAPINO: Temos. Lá, entre outras coisas, reparamos numa galera turca, muito bem equipada. Um rapaz turco, simpático, nos convidou a subir, e nos estendeu a mão. Subimos. Ele nos fez mil e uma gentilezas, e ofereceu-nos uma refeição ligeira. Comemos as frutas mais gostosas que se é possível imaginar, bebemos um vinho maravilhoso...

GERÔNCIO: Não vejo nada de triste nisso tudo.

SCAPINO: Espere um pouco e verá. Enquanto comíamos, ele deu ordem para que a galera se fizesse ao largo. Já longe do porto, mandou botar-me numa canoa, com este recado para o senhor: ou o senhor lhe envia imediatamente, por meu intermédio, quinhentos escudos, ou o Senhor Leandro será levado para o McDonald's para fazer sushi na chapa por toda a eternidade.

GERÔNCIO: Ô diabo, quinhentos escudos?!

SCAPINO: Sim, senhor. E tem mais: só me deu duas horas de prazo!

GERÔNCIO: Ah, turco de uma figa! Me fazer uma coisa dessas!

SCAPINO: Agora, compete ao senhor providenciar com a maior urgência para salvar da escravidão um filho a quem consagra tamanha ternura...

GERÔNCIO: Mas que diabo ia ele fazer nessa tal galera?

SCAPINO: Nem sonhava com o que ia acontecer.

GERÔNCIO: Vá correndo, Scapino, dizer a esse turco que eu boto a Justiça atrás dele!

SCAPINO: Justiça em alto mar?! O senhor está caçoando...

GERÔNCIO: Mas que diabo ia ele fazer nessa tal galera?

SCAPINO: Há dias em que a gente acorda com azar...

GERÔNCIO: Scapino! Chegou o momento de você se mostrar um servidor fiel...

SCAPINO: Como, senhor Gerôncio?

GERÔNCIO: Vá dizer a esse turco que ele devolva meu filho, e que você ficará no lugar de Leandro até eu arranjar o dinheiro.

SCAPINO: Oh, senhor Gerôncio, pensou bem no que está dizendo? Acha que esse turco seja tão idiota a ponto de aceitar um pobre diabo como eu no lugar do senhor Leandro?

GERÔNCIO: Mas que diabo ia ele fazer nessa tal galera?

SCAPINO: Não podia adivinhar essa desgraça. Mas preste atenção, senhor Gerôncio: o turco só me concedeu duas horas!

GERÔNCIO: Você disse que ele está exigindo...

SCAPINO: Quinhentos escudos.

GERÔNCIO: Quinhentos escudos! Mas então ele não tem consciência?

SCAPINO: Essa é boa! Consciência num turco!

GERÔNCIO: Sabe ele por acaso o que são quinhentos escudos?

SCAPINO: Sabe, sim, senhor. Sabe que são mil e quinhentas libras.

GERÔNCIO: E pensa esse bandido que mil e quinhentas libras se encontram no esterco do galinheiro, sem fazer força?

SCAPINO: Turco não pensa.

GERÔNCIO: Mas que diabo ia ele fazer nessa tal galera?

SCAPINO: É mesmo. Mas que remédio? Não se podia prever essas coisas. Por obséquio, senhor Gerôncio, despache-se!

GERÔNCIO: Tome, aqui está a chave do armário.

SCAPINO: Está bem.

GERÔNCIO: Você pode abri-lo.

SCAPINO: Muito bem.

GERÔNCIO: Na gaveta da esquerda tem uma chave grande. É da água-furtada.

SCAPINO: Sim, senhor.

GERÔNCIO: Você vai lá e apanha as minhas roupas que estão numa cesta grande. Venda tudo isso a um belchior, e resgate meu filho.

SCAPINO: O quê! O senhor está sonhando? Isso tudo não daria nem cem francos. Além do mais, bem sabe o pouco tempo de que dispomos.

GERÔNCIO: Mas que diabo ia ele fazer nessa tal galera?

SCAPINO: Chega de conversa, Senhor Gerôncio! Deixe em paz essa galera, e lembre-se de que o tempo voa, e que o senhor está na iminência de perder seu filho! Ah, coitado do meu amo! Talvez eu não te veja mais em minha vida, amo querido, e à hora em que te dirijo a palavra te estejam conduzindo como escravo, para o McDonald's! Mas o céu é testemunha de que fiz por ti tudo o que pude, e, se não foste resgatado, só deves acusar o mesquinho amor de teu pai!

GERÔNCIO: Espere aí, Scapino. Vou buscar o dinheiro.

SCAPINO: Vá depressa, Senhor Gerôncio! Tenho medo de passar da hora.

GERÔNCIO: Não foi quatrocentos escudos que você falou?

SCAPINO: Não. Quinhentos!

GERÔNCIO: Quinhentos escudos!

SCAPINO: Isso mesmo.

GERÔNCIO: Mas que diabo ia ele fazer nessa tal galera?

SCAPINO: O senhor tem toda razão. Mas é bom se apressar.

GERÔNCIO: Não podia arranjar outro passeio qualquer?

SCAPINO: É verdade. Mas ande rápido!

GERÔNCIO: Galera desgraçada!

SCAPINO: ( à parte) O pior de tudo, para ele, é a galera!

GERÔNCIO: Que cabeça a minha, Scapino! Eu nem me lembrava mais que acabei justamente de receber essa quantia em moedas de ouro! E mal podia imaginar, também, que ela me seria arrebatada logo! (Tirando a bolsa da algibeira e entregando-a a Scapino) Tome, vá resgatar meu filho.

SCAPINO: (estendendo a mão) Sim, senhor.

GERÔNCIO: (segurando a bolsa, que aparenta querer dar a Scapino) Mas diga a esse turco que ele é um bandido!

SCAPINO: (com a mão estendida) Vou dizer.

GERÔNCIO: (repetindo o gesto) Um infame!

SCAPINO: (com a mão estendida) Perfeitamente.

GERÔNCIO: (na mesma atitude) Um sujeito sem honra, um ladrão!

SCAPINO: Fique descansado.

GERÔNCIO: Que esses quinhentos escudos, ele está me extorquindo, ouviu? Sem a menor sombra de direito!
SCAPINO: Está certo.

GERÔNCIO: Que isso não é dado, ouviu? De jeito nenhum!

SCAPINO: Muito bem.

GERÔNCIO: E que se algum dia eu o pego, saberei me vingar!

SCAPINO: Ciente.

GERÔNCIO: (guardando a bolsa na algibeira e afastando-se) Vá, vá depressa e traga meu filho.

SCAPINO: Escute, senhor Gerôncio!

GERÔNCIO: O quê?

SCAPINO: Mas onde está o dinheiro?

GERÔNCIO: Não dei a você?

SCAPINO: Absolutamente! O senhor tornou a botá-lo na algibeira.

GERÔNCIO: Ah! É essa dor que me transtorna o espírito...

SCAPINO: Estou vendo.

GERÔNCIO: Que diabo ia ele fazer nessa tal galera! Maldita galera! Turco miserável! Vá para o diabo dos infernos!

SCAPINO: (á parte) É uma agonia para ele, os quinhentos escudos que estou lhe arrancando! Mas não está quite comigo. Há de me pagar em outra moeda a intriga que fez contra mim junto ao filho!


Cena VIII
Otávio, Leandro, Scapino

OTÁVIO: Muito bem, Scapino! Venceu a nossa batalha?

LEANDRO: Fez alguma coisa para livrar meu amor dessa aflição?

SCAPINO: Aqui estão duzentas pistolas que arranquei de seus pais.

OTÁVIO: Oh, mas que alegria você me dá!

SCAPINO: (a Leandro) Pelo senhor, não pude fazer nada.

LEANDRO: (querendo ir-se embora) Então, o jeito é morrer. Não quero nada com a vida, se Zerbineta nunca mais me dedicar o seu amor.

SCAPINO: Venha cá, venha cá! Vamos com calma. Por que tanta pressa?

LEANDRO: (voltando-se) Que é que você quer que eu faça?
SCAPINO: Bem, sua encomenda está aqui.

LEANDRO: Ah! Você me fez criar alma nova!

SCAPINO: Com uma condição: o senhor vai consentir que eu tire uma vingancinha de seu pai, pela peça que me pregou.

LEANDRO: Como você quiser!

SCAPINO: Promete perante testemunha?

LEANDRO: Prometo!

SCAPINO: Tome, aqui estão os escudos.

LEANDRO: Vamos depressa ajudar a moça que eu adoro!





































ATO III

Cena I
Zerbineta, Jacinta, Scapino, Silvestre


SILVESTRE: Pois é. Fazem mesmo questão de ficarem juntas?

JACINTA: Claro que sim. Uma situação dessas só me pode ser extremamente agradável. Recebo com a maior alegria minha companheira de sorte. Por mim, a amizade entre Otávio e Leandro se estenderá a nós duas.

ZERBINETA: Aceito a proposta. Não sou mulher para recuar, quando me atacam com as armas da amizade...

SCAPINO: E quando são armas de amor?

ZERBINETA: Bem, por amor é outra coisa. Aí, corre-se mais perigo, e nisso eu não sou lá muito audaciosa...

SCAPINO: Pois acho que o está sendo, agora, contra meu amo. O que ele acaba de fazer por sua intenção deve lhe dar estímulo para corresponder à altura.

ZERBINETA: Nessas coisas eu não me fio somente na sorte. O que Leandro fez não é bastante para me dar absoluta certeza. Tenho gênio alegre, e rio constantemente, mas enquanto isso penso com seriedade em certos assuntos. Leandro está enganado se julga que basta dar dinheiro ao meu grupo para que eu seja inteiramente dele. Há coisas que não se compram com dinheiro... Para retribuir o seu amor como ele deseja, careço de um penhor de sua fidelidade. E tem de vir enfeitado com certas cerimônias indispensáveis...

SCAPINO: Pois é exatamente como ele pensa, também. Meu amo a quer, mas de maneira decente. Nem eu seria capaz de me meter neste negócio, se houvesse má intenção...

ZERBINETA: Acredito, uma vez que o senhor está dizendo. Mas parece que o pai dele opõe certas dificuldades...

SCAPINO: Dá-se um jeito.

JACINTA: (a Zerbineta) Nossos destinos são tão parecidos que devemos ser muito amigas. Passamos pelos mesmos sustos, estamos expostas às mesmas desgraças...

ZERBINETA: Mas você pelo menos tem isso a seu favor: sabe de quem é filha, e se der a conhecer o nome de seus pais, a proteção deles poderá resolver tudo e assegurar sua felicidade, pela aceitação de um casamento já consumado. Eu, coitada de mim, não vejo nenhum auxílio naquilo que eu possa ser. E minha situação não é dessas que comovessem um homem como o Senhor Gerôncio, que só pensa em dinheiro...

JACINTA: É, mas por outro lado você tem uma vantagem: o rapaz de quem gosta não está sendo tentado por outro partido...

ZERBINETA: A mudança de sentimentos não é o que se deve recear mais num apaixonado. A gente percebe quando tem qualidades bastantes para prendê-lo... O pior de tudo é a autoridade dos pais: para ela, minha filha, qualidades não valem coisa alguma.

JACINTA: Ai, meu Deus, por que será que as inclinações naturais são sempre contrariadas? Amar deve ser uma coisa tão doce, quando a gente pode trançar à vontade essas correntes suaves que aprisionam dois corações...

SCAPINO: A senhorita está caçoando! Em amor, tranquilidade é coisa muito primitiva. A felicidade sem umas nuvenzinhas perde o gosto. A vida precisa ter altos e baixos, e as dificuldades que se insinuam entre as coisas despertam a chama, aguçam o prazer...

ZERBINETA: Ah, Scapino, conte pra gente aquela história que me disseram ser tão engraçada! Aquela da esperteza de que você usou para tirar dinheiro de um velho avarento... Você sabe que ninguém perde seu tempo me contando uma boa: eu rio até não poder mais...

SCAPINO: Aí vem Silvestre, que contará tão bem quanto eu. Agora estou preparando uma vingancinha, cujo gosto hei de saborear...

SILVESTRE: Mas por que é que você vai procurar sarna pra se coçar?

SCAPINO: Eu me distraio tentando coisas arriscadas.

SILVESTRE: Já lhe disse. Se você me escutasse, tirava essa ideia da cabeça.

SCAPINO: Sim. Mas é a mim mesmo que eu escuto.

SILVESTRE: Que diabo de distração é essa?

SCAPINO: Por que diabo você se preocupa?

SILVESTRE: Porque estou vendo que, sem necessidade nenhuma, você atrai sobre si uma chuva de bordoadas.

SCAPINO: Vai desabar nas minhas costas, não nas suas.

SILVESTRE: Claro que você é dono de suas costas, e dispõe delas como for de seu agrado.

SCAPINO: Esse gênero de perigo nunca me assustou. Detesto gente covarde, que, de tanto prever as conseqüências, não tem coragem para empreender coisa alguma.

Zerbineta: (a Scapino) Vamos precisar do senhor.

SCAPINO: Podem ir. Daqui a pouco irei encontrá-los. Ninguém há de dizer que me deixei enganar impunemente, e que revelei segredos que deviam ficar ocultos!


Cena II
Gerôncio, Scapino

GERÔNCIO: Então, Scapino? Como vai o caso de meu filho?

SCAPINO: Leandro está em lugar seguro, Senhor Argante. O senhor é que corre agora o maior perigo deste mundo! Gostaria que o senhor estivesse em casa...

GERÔNCIO: Como assim?

SCAPINO: Neste momento em que conversamos, estão à sua procura por toda parte, para matá-lo.

GERÔNCIO: A mim?!

SCAPINO: Ao senhor, mesmo.

GERÔNCIO: Mas quem?

SCAPINO: O irmão dessa tal moça com quem Otávio se casou. Ele acha que o senhor quer desmanchar o casamento para botar sua filha no lugar dela. Com esta idéia na cachola, resolveu bravamente descarregar a raiva sobre o senhor, e tirar-lhe a vida para vingar a honra. Todos os amigos dele, também espadachins, procuram o senhor pelos quatro cantos, pedindo informações. Eu mesmo vi, em vários lugares, soldados da companhia do rapaz interrogando toda gente e ocupando por pelotões as vias de acesso à sua casa! De maneira que o senhor não pode dar um passo nem à direita, nem à esquerda, sem cair em mãos deles.

GERÔNCIO: Que é que eu vou fazer meu caro Scapino?

SCAPINO: Não sei, não, senhor. Este negócio está muito esquisito. Veja como estou tremendo da cabeça aos pés, por sua causa! Espere um pouco... (volta-se, e finge ver no fundo do palco se já há alguém.)

GERÔNCIO: (trêmulo) E então?

SCAPINO: Não é nada, não.

GERÔNCIO: Você não seria capaz de me livrar desta aflição?

SCAPINO: Bem que estou pensando em dar um jeito. Mas... e se eu levar pancada, hein?

GERÔNCIO: Oh, Scapino! Mostre que é um servidor de mão-cheia! Não me abandone, eu estou lhe pedindo!...

SCAPINO: Mas não desejo outra coisa! Minha amizade ao senhor é tão grande que eu não teria coragem de abandoná-lo...

GERÔNCIO: Você será recompensado por isso, garanto! Prometo que lhe darei esta roupa, quando já estiver mais usada...

SCAPINO: Espere um pouco. Aqui está o recurso que achei mais indicado para salvá-lo. É preciso que o senhor se meta neste saco, e...

GERÔNCIO: (julgando ver alguém) Ui!

SCAPINO: Não, não! Não é ninguém! Como eu estava dizendo, é preciso que o senhor se meta aí dentro e procure não se mexer de jeito nenhum. Eu o carregarei nas costas, como um fardo qualquer, e o levarei até sua casa, passando no meio de seus inimigos. Quando a gente estiver lá, nós nos trancamos e mandamos pedir socorro contra os assaltantes.
GERÔNCIO: Boa idéia!

SCAPINO: Ótima, não lhe parece? O senhor vai ver. (à parte) Ele me paga a safadeza!

GERÔNCIO: Hein?

SCAPINO: Estou dizendo que seus inimigos vão cair como patinhos. Fique bem no fundo. Sobretudo, cuidado em não se mostrar, nem se mexer, haja o que houver! Entendido?

GERÔNCIO: Deixe por minha conta. Saberei me conter...

SCAPINO: Esconda-se! Aí vem um espadachim à sua procura! (disfarçando a voz) “Com'? Não t'rei a bentura de matar êsse' tal de G'rôncio? Loubado seja Deus, ninguâin me dirá ond' el' s'esconde?” (a Gerôncio, com voz natural) Quietinho aí! “Cão do demo, hei de incontrar êss' belhaco inda que seja no oco da terra!” (a Gerôncio, com voz natural) Não ponha a cara do lado de fora! (o sotaque arrevezado serve para simular outro personagem; o tom comum é o de Scapino) “Olé, um homem no saco!” Meu senhor? “Of'reço-te um luís d'oiro se me disser's onde diavo está Gerôncio!” Está procurando o Senhor Gerôncio? “Ora pinhões, sim qu'stou a procurá-lo!” Para que assunto, senhor? “Pra que assunto?” Sim. “C'os demônios, pra dar-lhe umas vordoadas até qu'êl estique o cambito!” Oh, senhor, ninguém dá bordoada numa pessoa como ele! Não é homem para ser tratado dessa maneira! “Quâim? Aquêl' idiota do G'rôncio, aquêl' malandro, aquêl' baldebinos!” Alto lá: O Senhor Gerõncio não é idiota, nem malandro, nem valdevinos! E faça-me o favor de tratá-lo com respeito, ouviu? “Com'? Então me tratas a mim com essa prusápia?” Estou apenas defendendo, como é de meu dever, um homem de bem que foi ultrajado! “S'ra' que és amigo dês' tal G'rôncio, hum?” Sou, sim, senhor! “Ah, cão do demo, és amigo dêl'. Muito que vâim!” (dando pauladas no saco) Ui, ui, ui, ui, meu senhor! Calma, homem de Deus, calma! Ui, ui, ui! “Toma lá, lev'isso pr'el, c'os meus cumprimentos! F'licidades!” O diabo leve esse gringo! Ri!

GERÔNCIO: (botando a cabeça fora do saco) Ai, Scapino, não aguento mais!...

SCAPINO: Ai, Senhor Gerôncio, estou todo moído, as costas me doem miseravelmente!

GERÔNCIO: Como?! Foi nas minhas que ele bateu!

SCAPINO: Nada disso! Foi nas minhas!

GERÔNCIO: Que é que você quer dizer com isso? Senti muito bem as bordoadas! Estou sentindo até agora!

SCAPINO: Não, senhor, absolutamente! Foi só a ponta do cacete que tocou nas suas costas!

GERÔNCIO: Então você devia ter-se afastado um pouco, para me poupar!

SCAPINO: Cuidado! Aí vem outro com cara de estrangeiro! (esta passagem se assemelha à do espadachim, quanto à mudança de linguagem e ao jogo cênico) “Echa é foa, eu correr como doido o dia inteiro e não encontrar êche imbechil do Chirôncio!” Esconda-se direitinho! “O' chenhor, facha-me o obchéquio: onde che encontra êche diacho de Chirôncio, que eu procurar chempre?” Não, cavalheiro, não sei onde está o Senhor Gerôncio. “Chem cherimônia, pode me dicher; eu não quer muita coisa com ele. Somentê facher-lhe uma fechtinha no lombô; uma dúchia de fordoádach e unch trech ou quatro gólpech de echpada atravech do peitô!” Juro, cavalheiro, que não sei onde ele está! “Pareche que eu fi mexer qualquer coicha nechte chaco.” Absolutamente, cavalheiro! “Eu ter muita fontade de enfiar echpada nechte chaco.” Não caia nesta! “Mochtre o que echtá lá dentrô.” Ah, isto é que não! “Icho é que não, por quê?” Não é da sua conta o que eu levo neste saco. “Mach eu quero fer, chabe?” Não vai ver coisíssima nenhuma! “Oh, mach que confercha viada!”São roupas de minha propriedade. “Mochtre, echtou lhe dichendo.” Não mostro. “Ah, não mochtra?” Não! “Eu fai echfregar echte pau em suach cochtach!” Pouco estou ligando a isto. “Ah, che fachendô de fêchta, hein?” (dando bordoadas no saco, e gritando como se as recebesse) Ai, aiai, aiai! “Até a folta! É uma lichãozinha para focê não cher maich incholente, oufiu?” Ah, desgraçado, ah, língua de trapo!

GERÔNCIO: (botando a cabeça fora do saco) Ai! Levei uma surra!...

SCAPINO: Acho que morri!...

GERÔNCIO: Mas por que diabo eles precisam malhar as minhas costas?

SCAPINO: (tornando a meter-lhe a cabeça no saco) Cuidado! Vem aí meia-dúzia de soldados! (imitando o vozerio de várias pessoas) “Vamos! Temos de encontrar Gerôncio! Procuremos por toda parte! Quem está com preguiça de andar? Não se pode esquecer lugar nenhum! Vamos a todos! Escarafunchemos tudo!Que direção tomamos? Vamos dar volta! Não, por aqui. À esquerda! À direita! Nada?! Vejamos.” (a Gerôncio, com voz natural) Suma-se! “Ah, camaradas, aqui está o criado dele! Vamos, maroto, onde está seu amo?” Oh, senhores, não me maltratem! “Diga, diga onde ele está! Depressa! Rápido! Rápido!” Calma, calma, gente! (Gerôncio põe a cabeça um pouquinho fora do saco e percebe a velhacaria de Scapino) “Se você não nos disser imediatamente onde está seu amo, vai cair uma chuva de bordoadas na sua cabeça!” Prefiro sofrer tudo a delatar meu amo! “Então vamos massacrar você!” Como quiserem! “Quer apanhar, não é? Pois tome...” Oh! (Gerôncio sai do saco, no momendo em que Scapino vai bater, e este foge).

GERÔNCIO: (só) Ah, infame! Ah, traidor! Cachorro! Era você que me surrava, hein?


Cena III
Zerbineta, Gerôncio

ZERBINETA: (rindo, sem ver Gerôncio) Ah, ah, ah! Preciso tomar um pouco de ar!

GERÔNCIO: (à parte, sem ver Zerbineta) Juro que essa você me paga!

ZERBINETA: (sem ver Gerôncio) Ah, ah, ah! Nunca vi história mais engraçada! Que grandíssimo idiota, esse velho!

GERÔNCIO: Não vejo nada de engraçado nisso. A senhorita não tem motivo pra rir.

ZERBINETA: Hein? Que é que o senhor está dizendo?

GERÔNCIO: Estou dizendo que a senhorita não deve troçar de mim?

ZERBINETA: Eu? Troçando do senhor?!

GERÔNCIO: Sim.

ZERBINETA: Como? Quem é que está querendo troçar do senhor?

GERÔNCIO: Pois a senhorita não veio aqui rir nas minhas bochechas?
ZERBINETA: Não é nada com o senhor, não. Estou rindo de uma história que me contaram agora mesmo: uma coisa impagável. Não sei se é porque eu estou interessada no caso, mas nunca vi nada tão gaiato como a peça que um rapaz pregou ao pai, para lhe arrancar dinheiro...

GERÔNCIO: O rapaz pregou uma peça ao pai, para lhe arrancar dinheiro?

ZERBINETA: Foi, sim. Não precisa insistir comigo para que lhe conte. Adoro contar histórias!

GERÔNCIO: Então me conte essa.

ZERBINETA: Pois não. Aliás, não arrisco lá grande coisa em contar. Essa aventura não vai ficar escondida muito tempo! Quis o destino que eu fosse filha de um caso clandestino. Acredite o senhor que fui roubada na maternidade pelo amante de minha mãe. O tal era meu próprio pai e, por sinal, um grande artista (mas que infelizmente não tinha seu trabalho reconhecido). Eis que cresci em meio ao universo da Arte, e acabei me tornando uma excelente atriz. Em uma de minhas apresentações, um rapaz me viu e gostou de mim. A partir desse momento, ele se grudou a meus passos, e olhe o moço a fazer, de começo, como todos os de sua idade, que pensam que basta abrir a boca e dizer uma palavrinha para que tudo esteja arranjado... Mas esbarrou no meu amor-próprio, que o obrigou a modificar um pouco sua primeira idéia. Confessou sua paixão às pessoas que me cercavam. Com o tempo, comecei a gostar também dele e decidi dar-lhe uma chance. Meu grupo de teatro começou a passar por dificuldades financeiras devido a razões diversas e ele, como o rapaz gentil que é, resolveu nos ajudar. O mal era que meu namorado estava na situação de quase todos os filhos de família: um tanto desprovido de dinheiro. O pai é rico, mas avarento como aquele não há. Espere aí... será que não consigo me lembrar do nome dele? Ora! Veja se me ajuda... Não pode me dizer o nome de alguém desta cidade, conhecido como rei dos avarentos?

GERÔNCIO: Não!

ZERBINETA: É um nome assim como ron... rôncio... Or... Orôncio... Não. Gê... Gerôncio! Isso: Gerôncio! Justamente. É o tal unha-de-fome. É a esse sovina que me refiro. Voltando à nossa história: o meu pessoal recebeu uma proposta de trabalho na capital e, como já não tínhamos dinheiro para nos manter aqui, estávamos prestes a aceitar. Caso aceitássemos, iríamos embora no dia seguinte, e o destino nunca mais permitira que eu e meu namorado nos encontrássemos outra vez. Então o rapaz, muito preocupado, aproveitando-se da sua classe social, resolveu por livre e espontânea vontade nos ajudar. Mas veja só, meu namorado ia ficar sem mim, por falta de dinheiro, porque não podia tirá-lo do pai. Mas a esperteza de um criado o salvou! Bem, o nome do criado eu sei perfeitamente. Chama-se Scapino. É um sujeito formidável, não há elogio que ele não mereça!

GERÔNCIO: (à parte) Ah, desgraçado!

ZERBINETA: Sabe qual o estratagema que ele usou para lograr o velho? Ah, ah, ah, ah! Não posso me lembrar disso sem rir bandeiras despregadas! Ah, ah, ah! Foi procurar aquele usurário, ah, ah, ah, e lhe disse que estava passeando pelo porto com seu filho, ih, ih, ih! Que tinham avistado uma galera turca e foram convidados a visitá-la. Lá dentro um rapaz turco os convidou a comer qualquer coisa. Enquanto eles comiam, a galera pôs-se em movimento e o turco devolveu Scapino sozinho para a terra, numa canoa, com ordem de dizer ao velho que se ele não mandasse imediatamente quinhentos escudos o rapaz seria levado para o McDonald's, condenado a fazer sushi na chapa eternamente! Ah, ah, ah! Aí então, aquele forreta, aquele miserável mergulhou numa angústia tremenda: sua ternura pelo filho trava um duro combate com a avareza... os quinhentos escudos que lhe pedem são quinhentas punhaladas no peito. Ah, ah, ah! Não tem coragem de arrancar esta soma de suas entranhas; e o sentimento faz com que ele imagine quinhentos meios ridículos de reaver o filho... Ah, ah, ah! Pensa em mandar a Justiça pelo mar afora atrás da galera turca, ah, ah, ah! Implora ao criado que se ofereça para ficar no lugar do filho, até que ele junte o dinheiro que não tem vontade de dar... Ah, ah, ah! Para apunhar os quinhentos escudos chega a abrir mão de quatro ou cinco roupas velhas que não lhe valem nem trinta! Ah, ah, ah! O criado a todo momento lhe mostra o absurdo desses planos. E cada reflexão sua é acompanhada por um comentário doloroso: “Mas que diabo ia ele fazer nessa tal galera? Maldita galera – turco sem-vergonha!” Afinal, depois de muito rodeio, depois de gemer e suspirar longo tempo... Mas parece que o senhor não está achando graça na história. Não me diz nada?

GERÔNCIO: Digo que esse rapaz é um patife, um atrevido e que o pai há de castigá-lo por essa esperteza! Que tal a garota é uma desmiolada, uma insolente, por injuriar um homem de bem que saberá ensiná-la a vir aqui perverter os filhos de família! E que o tal criado é um safado muito grande, que o Senhor Gerôncio mandará enforcar antes que o galo cante!


Cena IV
Silvestre, Zerbineta

SILVESTRE: Para onde a senhorita está fugindo? Sabe que acabou de falar com o pai de seu namorado?

ZERBINETA: Agora é que desconfiei disso! Imagine que me dirigi a ele para lhe contar sua própria história!

SILVESTRE: O quê? A história dele mesmo?

ZERBINETA: É! Ela estava bulindo dentro de mim, pedindo para ser contada! Não faz mal, pior para ele! Não vai alterar em nada as coisas para nós!

SILVESTRE: A senhorita estava mesmo com apetite de conversar, hein? Olhe que é preciso ter língua solta, para não guardar os nossos próprios segredos!

ZERBINETA: Ora, ele viria a saber por outra pessoa.


Cena V
Argante, Armanda, Silvestre

ARGANTE: (no bastidor) Silvestre!

SILVESTRE: (a Zerbineta) Volte para casa. O senhor Argante está me chamando.

ARMANDA: Com que então, seu malandro, você, Scapino e meu filho se juntaram para me lograr, hein? E pensam que vou tolerar uma coisa dessas?

SILVESTRE: Palavra de honra, minha senhora: se Scapino logrou, eu cá lavo as mãos. Juro que não me meti nisso de jeito nenhum!

ARMANDA: Hei de apurar tudo, velhaco, você vai ver! Não admito que ninguém me embrulhe!




Cena VI
Gerôncio, Armanda, Argante, Silvestre


GERÔNCIO: Ah, senhor Argante, o senhor me encontra esmagado pela desgraça!

ARGANTE: E eu? Estou num acabrunhamento horrível!
GERÔNCIO: Scapino, aquele vagabundo, usando de velhacaria, me furtou quinhentos escudos!

ARGANTE: Pois o mesmo canalha, também graças a uma velhacaria, me furtou duzentas pistolas!

GERÔNCIO: E não foi só isso de me furtar quinhentos escudos. Tratou-me de um modo que tenho até vergonha de contar! Mas ele me paga!

ARMANDA: Eu faço questão de uma coisa: ele há de se arrepender da peça que me pregou!

GERÔNCIO: Ah, mas eu vou tirar uma vingança memorável!

SILVESTRE: (à parte) Deus permita que eu não leve a minha parte!

GERÔNCIO: Mas isso ainda não é nada, Senhor Argante. Uma desgraça nunca vem só. Hoje eu me sentia feliz com esperança de rever minha filha, que era todo o meu consolo na vida. E acabo de saber pelo meu emissário que ela partiu há muito tempo de Varginha, e supõe-se que tenha falecido em viagem.

ARGANTE: Mas por que, faça-me o favor de dizer, o senhor a retinha em Varginha, privando-se da alegria de tê-la a seu lado?

GERÔNCIO: Tinha cá minhas razões. Interesses de família me obrigaram até agora a manter em absoluto segredo meu segundo casamento. Mas, que é isso?


Cena VII
Jacinta, Argante, Gerôncio, Silvestre

GERÔNCIO: Minha nossa Senhora, é você, filha?!

JACINTA: (lançando-se de joelhos diante de Gerôncio) Oh, papai Pandolfo!...

GERÔNCIO: Pode me chamar de papai Gerôncio; não use mais esse nome. Cessaram os motivos que me obrigaram a usá-lo com vocês, em Varginha.

JACINTA: Santo Deus! O senhor não imagina como essa troca de nome nos causou transtornos e sustos, durante os preparativos de viagem para vir procurá-lo aqui!

GERÔNCIO: Onde está sua mãe, minha filha?

JACINTA: Mamãe não está mais aqui, papai Gerôncio. Mas antes de mais conversa, peço-lhe que me perdoe... Eu me casei. Fiquei tão abandonada longe do senhor e da mamãe!

GERÔNCIO: Você se casou?!

JACINTA: Casei-me, sim senhor.

GERÔNCIO: Com quem?

JACINTA: Com um rapaz chamado Otávio, filho de um tal Senhor Argante e de uma tal Senhora Armanda...

GERÔNCIO: Minha nossa Senhora!

ARGANTE: Meu Deus do Céu!

ARMANDA: Não é possível!

ARGANTE: Vamos! Leve-nos depressa ao lugar onde ele está!

JACINTA: Venham comigo.

GERÔNCIO: Passe à frente. Sigam-me, sigam-me.

SILVESTRE: (só) Isso é que é uma aventura surpreendente!


Cena VIII
Scapino, Silvestre

SCAPINO: Então, Silvestre, que faz o nosso pessoal?

SILVESTRE: Tenho duas notícias pra você. Uma é que o caso de Otávio está arranjado. Imagine que a senhorita Jacinta é nem mais nem menos que filha do Senhor Gerôncio. E o acaso fez justamente aquilo que a sabedoria dos pais tinha deliberado... A outra notícia é que os três velhos estão fazendo ameaças tremendas contra você. Principalmente o Senhor Gerôncio.

SCAPINO: Isso não tem importância. Ameaças nunca me deram dor de barriga. São nuvens que passam muito acima da cabeça...

SILVESTRE: Tome cuidado. Os filhos podem se reconciliar com os pais, e você se mete em camisa de onze varas!

SCAPINO: Deixe por minha conta. Saberei acalmar a raiva deles.

SILVESTRE: Vá-se embora, que eles estão saindo!


Cena IX
Gerôncio, Argante, Armanda, Silvestre, Jacinta

GERÔNCIO: Oh, minha filha, você poderia vir morar comigo em minha casa. Oh, minha alegria seria completa se eu pudesse ter sua mãe a meu lado!

ARGANTE: Aí vem Otávio. Chegou em boa hora!


Cena X
Otávio, Armanda, Argante, Gerôncio, Jacinta, Zerbineta, Silvestre

ARGANTE: Meu filho! Venha se regojizar conosco pela feliz aventura do seu casamento!

OTÁVIO: Não, papai. Suas palavras não adiantam nada. Devo arrancar a máscara perante o senhor. Já lhe contaram o meu compromisso, não?

ARGANTE: Sim, Otávio. Mas você não sabe de uma coisa...

OTÁVIO: Sei o que é preciso saber.
ARGANTE: Quero dizer que a filha do Senhor Gerôncio...

OTÁVIO: A filha do Senhor Gerôncio para mim não significa nada.

SILVESTRE: (a Otávio) Escute, senhor Otávio...

OTÁVIO: Não. Cale a boca.

ARGANTE: (a Otávio) Sua esposinha...

OTÁVIO: Não, papai, estou lhe dizendo. Prefiro morrer a deixar minha querida Jacinta. (Atravessando a cena para ficar ao lado de Jacinta) É inútil insistir. Ei-la, aquela a quem dei minha palavra! Hei de amá-la por toda a vida! Não quero saber de outra mulher!

ARMANDA: Pois bem, meu filho: é dela mesma de que estamos falando, diabo de maluco, que está sempre teimando!

JACINTA: (mostrando Gerôncio) Sim, Otávio! Este é meu papai, que afinal encontrei! Nosso sofrimento acabou!

GERÔNCIO: Vamos lá para casa. É melhor do que aqui para conversarmos.

JACINTA: (mostrando Zerbineta) Papai, por favor, não me separe desta doce criatura que o senhor está vendo... O senhor há de estimá-la, quando conhecer suas qualidades.

GERÔNCIO: Você quer que eu leve para nossa casa a namorada de seu irmão, que ainda há pouco me disse nas bochechas um milhão de desaforos?!

ZERBINETA: Senhor Gerôncio, me perdoe! Eu não falaria daquela maneira se soubesse quem era o senhor. Só o conhecia de fama...

GERÔNCIO: Fama de quê?!

JACINTA: Papai, o sentimento que meu irmão tem por ela não encerra nada de mal. Ponho a mão no fogo pela virtude de Zerbineta.

GERÔNCIO: Esta é muito boa! Queriam então que eu casasse meu filho com ela? Uma rapariga que ninguém sabe lá de onde veio, uma vagabunda!...



Cena XI
Leandro, Otávio, Jacinta, Zerbineta, Argante, Armanda, Gerôncio, Silvestre

LEANDRO: Papai, não fique triste por eu gostar de uma desconhecida, sem família importante e sem fortuna.

ZERBINETA: Exato! E saibam que sou de muito boa família, e sou daqui mesmo.

LEANDRO: Como?!

ZERBINETA: Nasci de um relacionamento clandestino entre meu pai e uma mulher casada. Fui roubada na maternidade pelo meu próprio pai e, neste dia fatídico, ele roubou também uma jóia, relíquia de família: este é o bracelete que me ajudará a encontrar minha mãe.

ARGANTE: Meu Deus! Mas este é o seu bracelete, Armanda! Você... você teve um amante?!

ARMANDA: Ora bolas, você sabia, não se faça de bobo! Vamos ao que interessa: então esta moça é minha filha!

GERÔNCIO: Sua filha?!

ARMANDA: É ela, sim! Reconheço todos os sinais, tenho certeza! Filhinha querida!...

JACINTA: Jesus! Que coisas extraordinárias estão se passando!


Cena XII
Leandro, Otávio, Gerôncio, Argante, Armanda, Jacinta, Zerbineta, Silvestre, Scapino

SCAPINO: Senhores! Aconteceu uma coisa horrível!

GERÔNCIO: Que foi?

SCAPINO: Coitado de mim!

GERÔNCIO: Você é um maroto que eu vou mandar enforcar.

SCAPINO: Ai, Senhor Gerôncio, não terá esse incômodo! Eu passava por uma construção quando me caiu em cima, avalie o senhor, a marreta de um pedreiro, e me quebrou a cabeça e pôs os miolos para fora! Estou agonizando, pedi que me carregassem até aqui, para falar aos senhores antes de morrer!

Cena XIII
Leandro, Otávio, Gerôncio, Argante, Armanda, Jacinta, Zerbineta, Silvestre, Scapino

SCAPINO: (sendo carregado, com a cabeça enfaixada, como se estivesse ferido) Ai, ai! Os senhores estão me vendo... ai, ai! Numa triste situação... não quis morrer antes de pedir perdão a todas as pessoas a quem posso ter ofendido... Ai! Sim, senhores, antes de exalar o último suspiro, eu lhes suplico de todo o coração que me perdoem tudo que eu possa ter feito de mal... Principalmente ao Senhor Argante, à Senhora Armanda... e ao Senhor Gerôncio... Ai!

ARGANTE: Acho que podemos perdoá-lo.
ARMANDA: Por mim, está perdoado. Vamos, morra em paz.

SCAPINO: (a Gerôncio) Foi ao senhor que eu ofendi mais, com aquelas bordoadas que...

GERÔNCIO: Não continue. Eu também perdoo.

SCAPINO: Foi uma doidice de minha parte, aquelas bordoadas que...

GERÔNCIO: Deixemos disso.

SCAPINO: Na hora da morte, sinto um arrependimento incrível daquelas bordoadas que...

GERÔNCIO: Oh, senhor! Cale a boca.
SCAPINO: Aquelas malditas bordoadas que eu lhe...

GERÔNCIO: Cale a boca, já disse. Eu esqueci tudo.

SCAPINO: Ah, quanta bondade! Mas é de coração mesmo, Senhor Gerôncio, que me perdoa aquelas bordoadas que...

GERÔNCIO: Claro que é. Não se fala mais nisso. Perdoo-lhe tudo, Scapino.

SCAPINO: Ah, Senhor Gerôncio, sinto-me inteiramente aliviado com essa palavra!

GERÔNCIO: Sim. Mas perdoo com a condição de você morrer.

SCAPINO: Como é, Senhor Gerôncio?!

GERÔNCIO: Retiro minha palavra, se você escapar.

SCAPINO: Ai, ai! Minha fraqueza está voltando...

ARGANTE: Meu caro Senhor Gerôncio, em atenção à nossa alegria, é melhor perdoar-lhe sem condições...

GERÔNCIO: Está bem, vá lá!

ARGANTE: Vamos jantar todos juntos, para celebrar nossa felicidade!

SCAPINO: E eu?! Me levem para a ponta da mesa antes que eu morra!


FIM

MOIRA - Baseado em OTELO

ROTEIRO – OTELO

Foco carta, moira (Desdêmona – predestinada – maldição da família)

Douglas Nascimento - Marcelo
Caio do Monte Brandão - Thiago
Aline Ferezin – Desdêmona ou Avó
Fernanda de Castro – Desdêmona ou Avó
Laila Cricca – Desdêmona - fantasma
Samantha Aires - Roberta
Marcela Gallinucci – Milena
Amanda Massaro - Jorge
Esmeralda Thomé - tia

Texto: Renata e Esdras Domingos.


Prólogo
Avó - Eu gosto das cartas: elas tem magia, brilho. Me aquece pensar que a pessoa que escreveu uma carta tirou um tempo de sua vida para se dedicar àquele pedaço de papel, que seu cérebro junto ao seu coração foi fiando, fiando e que a teia pronta se encontra ali, naquela carta. Lindo artesanato de letras. Coisa de mãe, quente colo materno. Nesse mundo de hoje, não temos mais tempo pra essas coisas. E-mails, os recados no Orkut, as mensagens no MSN são muito frágeis pois são feitos com a facilidade de quem estala um dedo. Uma carta não, uma carta tem cheiro de história, do bolor pálido, âmbar, da poeira que encanta, da Europa dos tempos antigos, do Mediterrâneo, suas gentes e tomates suculentos. As cartas também demoram a chegar e geram uma ansiedade teatral. Os e-mails não, tem a sua serventia, mas chegam na mesma hora, sem graça, nem expectativa, e ainda somem com facilidade, com um vírus qualquer ou uma simples clicada. As cartas não se perdem jamais, se você cuidar delas, as terá para sempre.
Desdêmona fantasma - Aquela carta ali. Oh carta, cale-se. Não me contes nada. Quero quem sabe nunca te descobrir. Posso esperar um tempo, infinito enquanto dure e assim guardar sempre nesse tempo a esperança de algo bom que poderá acontecer a qualquer momento.
Avó – Leia, filha. Leia.
Desdêmona – Vó, que saudades.
Avó – Tenho muitas histórias para te contar. Agora leia a carta.
Desdêmona fantasma – Não, não leio. (sai correndo)
Desdêmona fantasma não meche na carta e sai. As personagens vão entrando uma de cada vez. Uma pega a carta, os outros vão entrando e lendo a carta que passa de mão em mão e volta para o foco. Desdêmona viva olha para a carta. Marcelo entra.

Cena 1 – Desdêmona e Marcelo
Marcelo – Você tem a cabeça nas nuvens.
Desdêmona – E os pés no chão. Olhe ao redor. Está tudo pronto, meu amor. Nos casamos daqui há dois dias e serei então a mulher mais feliz do mundo.
Marcelo – Você fez tudo isso sozinha?
Desdêmona – Minha tia me ajudou. Ela vai dormir aqui essa semana. Veio de tão longe coitada.
Marcelo – Não gosto dela. Ela me olha de um jeito estranho.
Desdêmona – Você é muito desconfiado. Deixe a minha tia em paz e se divirta com as nossas coisinhas. Vamos dar uma volta?
Marcelo: Vamos. Quando?
Desdêmona: Hoje.
Marcelo: Hoje? De jeito nenhum. Não posso querida. Tenho muitas coisas para fazer. Você não quer ter uma lua de mel tranqüila?
Desdêmona: Quero.
Marcelo: Então?
Desdêmona: Só um pouquinho. Estou muito tempo aqui dento, preparando tudo.
Marcelo: Vá com a sua tia.
Desdêmona: A minha tia já está dormindo e eu queria mesmo ir com você.
Marcelo: Estou cansado, querida. Amanhã, nós vamos.
Desdêmona: Vou dar uma volta então.
Marcelo: Sozinha?
Desdêmona: Sim. Por que?
Marcelo: Por nada.
Desdêmona: Até já.
Marcelo: E aquela carta?
Desdêmona: Que carta?
Marcelo: Aquela ali.
Desdêmona: Ah, sim. Aquela carta. Não sei. Recebi hoje. Estou guardando para abrir depois, na sexta-feira. É para dar sorte.
Marcelo: Você tem cada coisa esquisita.
Desdêmona: Eu me divirto, só isso. (Desdêmona sai)

Cena 2 – Marcelo
Marcelo: Rude sou de fala, estranho ao doce linguajar da paz. Sobre muito pouca coisa posso falar no vasto mundo se não for de batalhas e ferramentas. Disso entendo bem. Por isso, quando exponho assunto próprio, vindo de meu coração, não sei fazê-lo bem. Que drogas, que feitiços, que conjuros, que mágica potente usou essa mulher? Eu que vivi sempre só, preocupação nenhuma a não ser com meu próprio prato de comida, me vejo derretido, amarrado, obcecado. Ela se diverte. O que isso quer dizer? Ela se diverte. E essa carta ainda. Quem me dera poder seguir seu rastro, Desdêmona.

Cena 3 – Marcelo, Thiago e Jorge

Entram Thiago e Jorge, um de cada lado.
Thiago - Marcelo e Jorge, que bom vê-los.
Marcelo – Não foi trabalhar hoje?
Thiago: Está perguntando como amigo ou como chefe?
Marcelo – O que é isso, Thiago? Fiquei preocupado com você, de verdade. Você não costuma faltar sem avisar.
Thiago: Eu estou muito indisposto. Estou com uma forte dor de cabeça. E você Jorge? E a nova sala, novo posto, tudo novo?
Jorge: Estou muito feliz pela oportunidade que o Marcelo está me dando. É um grande reconhecimento.
Thiago: Eu também estou muito feliz por você. Por vocês.
Marcelo: Logo chega o seu dia, Thiago. Não me esqueci de você.
Thiago: Não estou pensando nisso. Esquece. Marcelo casa sábado! Viva!
Marcelo: É isso aí, estou transbordando de felicidade. A Desdêmona é a parte que falta em mim.
Jorge: Está apaixonado.
Marcelo: Estou sim, como nunca imaginei ficar.
(saem Jorge e Marcelo, Thiago vê Roberta a escuta escondido)

Cena 4 – Milena e Thiago
Roberta : Ele me amava. Mostrou-me tantas vezes no céu as pequenas estrelas e apontava os planetas em noites de escuridão. Ele me amava, eu tenho certeza. Quando eu nasci, ele me disse várias vezes, fui a sua alegria. Tenho lembranças de noites e tantos dias de passeios, de corridas, de risos sem fim. Até que ele cresceu e eu cresci. E os risos se transformaram em sorrisos. Ele me olhava e não entendia e eu tentava mostrar o meu amor em vão. Mas só enxerga aquele que quer, quem tem propensão. Marcelo nunca me vira como sua mulher, mas como irmã ou filha talvez. Que dor sinto eu. Sábado se aproxima, o dia mais escuro de minha vida, a dor mais profunda em meu coração. Oh, meu doce e rude Marcelo. Adeus, enterro aqui o meu amor por ti, no dia de seu casamento.
Thiago: Peguei.
Roberta: Não, por favor, não conte a ninguém.
Thiago: O que é isso, Roberta? Que susto é esse? Até parece que eu sou uma pessoa que mereça tanta desconfiança.
Roberta: Não é isso. É que você ouviu sem querer, algo que eu disse sem querer. Disse para mim mesma e essa conversa acabou aqui.
Thiago: Que falta de esperança!
Roberta: Não, não posso fazer mais nada, Thiago. Tivesse eu feito antes, agora é tarde demais.
Thiago: Não diga isso. Vai jogar a sua vida fora? Estou dizendo como seu amigo. Quem sabe, Marcelo também não guarde um amor por você em segredo. É para o seu bem e do Marcelo, que também é meu amigo. E se ele casa com a Desdêmona dessa forma, também não fará dela uma mulher feliz.
Roberta: Ele comentou alguma coisa com você?
Thiago: Um dia deixou escapar. Depois ficou rubro de vergonha.
Roberta: É mesmo? Me conte mais.
Thiago: Não posso fazer isso. O Marcelo me mataria se soubesse.
Roberta: Obrigado Thiago, você me devolveu a felicidade.
Thiago – Mas eu não disse nada!
Roberta – Eu entendi.
Thiago- Não jogue a sua vida pela janela, ouviu, menina? Ligo pra você mais tarde.

Cena 5 – Marcela e Thiago
Milena: Não consigo dormir.
Thiago: O silêncio ajuda. Fique quietinha, meu amor.
Milena: Você encontrou o Marcelo hoje?
Thiago: Claro.
Milena: E você não notou nada? Não aconteceu nada?
Thiago: O que, mulher?
Milena: É que ele e Desdêmona se casam sábado.
Thiago: Sim e daí?
Milena: Nada. Nadinha.
Thiago: Então, boa noite. (silêncio)
Milena: Eu gostaria de ser a madrinha, mas eles convidaram o Jorge e a esposa. Não sei quando fizeram esta amizade, pois Desdêmona era unha e carne comigo.
Thiago: Pare de futricar!
Milena: Credo, o que você tem?
Thiago: Sono.
Milena: Ãhn... (silêncio)É que eu pensei ter visto a Desdêmona receber uma carta pelo correio.
Thiago: E o que tem?
Milena: Nada. Nadinha mesmo. Mas é estranho alguém receber uma carta hoje em dia, não é mesmo? Nunca mais recebi uma. (silêncio)Nem flores.
Thiago: Oras, Milena, não me tire do sério.
Milena: Ai, Thiago, não é estranho? Eu cheguei a pegar a carta na mão, mas o vento soprou e ela tombou para as mãos de Desdêmona. E então, eu estava do lado, esperando que ela abrisse, e a atormentada disse com palavras poéticas e idiotas que guardaria a carta até sexta. Quer dizer, ela é uma tremenda desmancha prazeres. Não consigo dormir. Não consigo.
Thiago: A Desdêmona é esquisita. Tem a cabeça nas nuvens.
Milena: Gostaria eu de ser assim. O que foi?
Thiago: Me deixe sozinho.
Milena: Essa é boa. Vai dormir no sofá.
Thiago: Saia. Saia. Saia. (Marcela sai) Essa é a minha chance. Já disse muitas vezes e torno a dizê-lo pela centésima vez: odeio o Marcelo; tenho para isso motivos arraigados no coração. O seio do tempo encerra muitos acontecimentos que terão de concretizar-se. Tem-me afeição. Meu plano, desse modo, sobre ele vi atuar com mais certeza. Jorge é um homem de bem. Ora vejamos como posso alcançar o lugar dele e enfeitar meu desejo com dobrada patifaria. Como? De que modo? Reflitamos. Deixar passar o tempo e embair-lhe os ouvidos, declarando-lhe que Jorge mostra muita intimidade com a mulher dele. O exterior de Jorge e seu todo insinuante o predispõem a tomar-se suspeito facilmente. Foi feito para seduzir mulheres. De natureza é o Mouro livre e aberta; honesto julga ser quem aparenta, tão-só, honestidade. Sem trabalho pelo nariz poderá ser levado, tal qual os asnos. Pronto; já está gerado. A noite e o inferno à luz hão de trazer meu plano eterno. Em frente! Marcha! O posto será meu, nem que para isso uma tragédia aconteça. Está fácil, muito fácil. As sementes estão soltas por aí. Só é preciso germiná-las. Acorde dia, preciso trabalhar.

Cena 6 – Jorge e Thiago

(Jorge passa)
Thiago – O vento sopra ao meu favor. Jorge, que bom vê-lo!
Jorge – Meu amigo, o que está fazendo por aqui?
Thiago – Vim visitar meu irmão.
Jorge – Eu não sabia que tinha irmãos.
Thiago – Pois é... E o Marcelo?
Jorge – O Marcelo? Não sei. Não sei, por que? Acho que está no escritório.
Thiago – Não, você é seu melhor amigo e não sabe? Ai, por favor, Jorge. É que eu pensei...
Jorge – Fale logo, o que aconteceu.
Thiago – Bom, não era nem para eu estar sabendo. É que eu ouvi por acaso a discussão.
Jorge – Que discussão?
Thiago – Jorge, por favor, não me tome por fofoqueiro. Não conte para o Marcelo que eu estou te dizendo, por favor. Ele nem sabe que eu ouvi. Só estou preocupado com ele.
Jorge – Estou ficando nervoso.
Thiago – A Desdêmona desmanchou o casamento.
Jorge – O que é isso, meu amigo? Ela ficou louca?
Thiago – Parece que ela desconfia que o Marcelo está se encontrando com a Roberta, às escondidas.
Jorge – Mas isso não é verdade.
Thiago – Pois é, vá você convencer uma mulher enciumada.
Jorge – Pois eu vou. Não vou deixar essa união acabar assim. Vou falar com a Desdêmona. Dê alguma desculpa ao Marcelo. Não vou ao nosso encontro. Aproveito esse tempo em que ele não está lá para acabar com essa patacoada da Desdêmona. Não diga que irei, sim?
Thiago – Claro, boca fechada. Esse é o nosso segredo.


Cena 7 – Tia

Tia – Desdêmona, pobre Desdêmona. Já conheci tantas mulheres assim. Procuram no homem que escolheram um sonho que perseguem desde pequenas. Não é que os homens sejam ruins, eles são eles mesmos. A mulher é que não deve pensar poder modificá-los. É muita onipotência nossa. Fazer brilhar os móveis, esperando alguma recompensa. Esses brilhos são opacos aos olhos dos maridos. Eles deixariam assim mesmo, móveis foscos, toalhas viradas, camas por arrumar. Oh, Desdêmona! Vim para te proteger como filha, sou mãe no lugar da tua que se foi tão cedo. Tão logo tornou-se filha em meu coração que está aberto desde então para ti, para teus anseios, ansiedades e para acolher seu sofrimento . Quando vier... quando vier... ele será inevitável. Vejo a hora se aproximar. Está prometida à desgraça. O ciúme corrói qualquer pensamento, transforma o que é bom em nada, transforma o mundo em uma pequena casca de noz, as maravilhas em coisas corriqueiras, banais, a vida sem esperança. Marcelo não é ruim, é ciumento, basta uma faísca. Já vi essa história. Sua avó perdeu os sonhos assim. Disse que lerá a carta na sexta, aguardo exaustivamente como os ciumentos. Estou pronta.
Avó – Fio por fio, vejo a mesma cena. Estou pronta. Filha não se desespere. Feche seus olhos para não sentir. Sei que uma mãe nunca descansa (tia não vê a avó - Desdêmona fantasma aparece) Leia a carta, querida. Está na hora.
Desdêmona fantasma – Já vou, vó. Ela sempre quer pentear meus cabelos, quando estou eu a correr. As avós sempre são assim. Já vou vó. Já vou. (saem os fantasmas, tia suspira)


Cena 8 - Cena do Thiago e do Marcelo
Marcelo - Estávamos precisando relaxar um pouco não é Thiago? É muito trabalho ao longo do dia.
Thiago - Concordo com você meu amigo, apesar de ser um ótimo trabalho ainda sim é um pouco desgastante. Até merece um brinde. Ao sucesso do nosso banco.
Marcelo - Com certeza, nós batalhamos muito pra deixar esse banco como está, que bom que eu sempre tive ótimas pessoas ao meu lado, como você, Jorge, Roberta, trabalhando comigo.
Thiago - É sim, Jorge e Roberta são ótimos colegas de trabalho, estão sempre ao dispor do banco, eu até me sinto mais seguro trabalhando com pessoas assim.
Marcelo - Eu também, principalmente com você Thiago, faz três anos que trabalhamos juntos, você sempre deu o sangue pelo trabalho, por isso que é meu braço direito e de quebra é meu melhor amigo. Sempre pude confiar plenamente em você, e nos seus conselhos.
Thiago - E sempre poderá confiar, estarei sempre ao seu lado não importa o que houver. Mas mudemos de assunto, como está o casamento? Acho que bem, por que sempre o vejo feliz da vida.
Marcelo - Meu casamento vai muito bem Thiago, Desdêmona é uma mulher maravilhosa, foi a melhor coisa que me aconteceu na vida, não achei que tal felicidade realmente existisse, às vezes tenho medo de acordar desse sonho.
Thiago - Seria uma pena mesmo. Perder a mulher da sua vida, espero ser só impressão.
Marcelo - Como assim, espero ser impressão? Do que esta falando?
Thiago - Acho que falei demais, não é nada que deva ser tratado por colegas de trabalho, Marcelo, esqueça o que eu disse.
Marcelo - Não, não conseguirei esquecer disso, não Thiago, me diga, não como colega de trabalho, mas como meu amigo que sempre foi, o que você esta me escondendo?
Thiago - Não sei se devo me intrometer?
Marcelo - Thiago, não faça isso comigo, não me deixe nessa situação, por favor me diga.
Thiago - Está bem, mas não me leve por fofoqueiro, já que foi você mesmo quem quis saber... Às vezes, quando sua esposa vem ao banco fazer uma visita à você, eu sinto que ela é vista por olhos mais desejosos que os seus.
Marcelo - Mais do que eu? Mas por quem seria? Me diga.
Thiago – Preste atenção, você. Não posso dizer.
Marcelo – Agora me fale, você começou.
Thiago – Eu não deveria...
Marcelo – Não saímos daqui hoje.
Thiago - Seu mais recente gerente. Jorge.
Marcelo - Não é possível, você deve estar enganado, Jorge é leal a mim, assim como você. E ele me ajudou a conquistá-la, ele não seria capaz de tal traição. Não a mim. Ele é meu padrinho de casamento. E a Roberta é amiga da Desdêmona. Não pode ser!
Thiago - Assim fico mais tranqüilo, se vocês são tão próximos e você tem tanta confiança nele, ele não seria capaz de algo tão tenebroso, ainda mais depois de ganhar um cargo de tanta importância, no qual ele pode construir uma família sem se preocupar com os gastos, já que o cargo de gerente só é abaixo ao seu de diretor do banco.
Marcelo - Thiago, onde quer chegar? Está dizendo que isso tudo seria um plano pra ganhar meu cargo e minha amada?
Thiago - Não me atreveria a dizer tal coisa, mas seria muito conveniente pra ele. O ponto central é: você confia na sua esposa Marcelo?
Marcelo - Completamente, ela nunca me deu motivos pra não confiar, a única vez que a vi mentir, foi para a tia quando começamos a nos envolver.
Thiago - Mentiu para a própria mãe? Sua tia é como se fosse sua mãe, não é?
Marcelo - É meio estranho mesmo, mas foi para o bem do nosso amor. Para mim ela nunca mentiu.
Thiago - Entendo, seria muita deslealdade ela mentir para você como fez com a mãe, não?
Marcelo - Seria, sim, acho que isso acabaria com tudo o que temos conquistado juntos.
Thiago - Acabaria? O que você faria se ela o traísse?
Marcelo - Nem eu mesmo sei meu amigo.
Thiago - Marcelo?
Marcelo - sim?
Thiago - Você disse a Desdêmona que chegaria tarde hoje, certo?
Marcelo - Certo.
Thiago - Onde está Jorge?
Marcelo - Ele disse que não estava se sentindo muito bem, por isso não quis vir conosco?
Thiago - Seria isso mesmo?
Marcelo pensa um pouco em silencio
Thiago - Vá para casa, veja como esta sua esposa, se ela esta sozinha, não ligue, apareça sem avisar, se ela não tiver nada a esconder ela vai adorar a surpresa. Não há de ser nada.
Marcelo - Acho que sim.
Thiago - Vá rápido, estarei rezando pra que eu esteja enganado e que esteja tudo como deve estar.
Marcelo - Eu também Thiago, eu também, até mais ver.
Marcelo sai.
Thiago -Meu veneno vai agindo e meus peões estão posicionados para o sacrifício.

Cena 9 – Marcelo vê Desdêmona e Jorge conversando na sala de casa
Desdêmona – Marcelo, querido. Chegou cedo.
Marcelo – Está surpresa em me ver.
Desdêmona – Estou sim.
Jorge – Marcelo, eu...
Marcelo – Não precisa explicar. Eu sei de tudo. Poupe meus ouvidos de mentiras e ingratidão.
Jorge – Amigo, realmente eu te devo uma explicação.
Marcelo – Quieto. Quietinho que sou capaz de cortar a sua garganta. Meu sangue pulsa mais do que possa imaginar, mais do que você conhece em vida.
Desdêmona – Querido, você está sendo muito rude.
Marcelo – Não me venha com essa história, porque a minha grosseria, a minha rudeza é melhor do que a canalhice de vocês. Quer sai sozinha... Saia agora.
Desdêmona – Sair sozinha? Sempre convido você para ir junto comigo.
Marcelo – Parte do seu plano pérfido que agora arrasta para dentro de casa.
Desdêmona – Você está passando do ponto. O que está pensando? Do que está falando? O Jorge está sendo muito delicado em vir aqui. Nem chegou a me dizer a que veio e você entra desse jeito. Não seja bruto.
Marcelo – Não me fale assim ou eu perco a cabeça. Abra a carta.
Desdêmona – O que isso tem com essa discussão?
Marcelo – Abra a carta e leia em voz alta.
Desdêmona – Pare com isso. Não vou abrir. Isso é assunto meu.
Marcelo – (ao Jorge) Saia de perto, saia!
(Jorge sai. Marcelo sai. Desdêmona fica perplexa. Olha para a carta)

Cena 10 – Avó e Desdêmona fantasma.
(Entra a avó / Avó está concentrada, como se estivesse esperando algo – imagem do metrô – teatro nô / Desdêmona entra correndo)
Desdêmona fantasma – Vó, por que me persegue?
Avó – Eu não te persigo, filha. Você é quem está perseguindo uma trajetória sem fim.
Desdêmona – Insiste comigo. Me deixe livre. Não consigo sair daqui. Você precisa me deixar ir embora.
Avó – Olhe aquela carta.
Desdêmona – Olha você, de novo! Quer pentear meus cabelos. Quer pentear meus cabelos quando estou eu a correr. (Desdêmona sai / Avó fica na mesma posição e não sai mais / Desdêmona viva está olhando a carta)

Cena 11 – Roberta, Milena e Desdêmona
(Roberta entra correndo, quando Desdêmona pensava em abrir a carta)
Roberta – Desdêmona, preciso falar com você.
Desdêmona – Oh, minha amiga, meus sonhos estão se indo. Marcelo não me quer mais e não sei o por quê.
Roberta – Eu não sei o que dizer.
Desdêmona – Não precisa dizer nada. É bom ter você aqui. (abraça a amiga)
Roberta – Meu Deus, como posso eu contar, me desculpar, ela nunca vai entender. Tudo foi destruído, pois nunca tomarei seu casamento por meu. Quero pedir desculpas pelos meus sentimentos, como posso fazer isso? (à Desdêmona) Vou embora. Preciso ir.
(Roberta não vai porque entra Milena)
Milena – Olha só quem encontro aqui. Meu marido tem olho de gato.
Roberta – Milena, console Desdêmona você. Eu preciso ir.
Milena – E eu sei bem por que.
Roberta – Não. Não, por favor.
Milena – Você escolheu para madrinha a sua pior inimiga. Está na sua frente o motivo do seu fracasso.
Desdêmona – O que você está dizendo?
(tia entra)
Tia – Não ouça nada filha. Isso não vai te ajudar.
Desdêmona – Agora eu quero saber. O que vocês três sabem e eu não sei? Estou sozinha então?
Tia – Não é nada. Isso não é nada. A semente depois de plantada, cresce e fim. Não posso dizer, senão eu mesma a arrasto para o fim. Apenas, abra a carta. Não ouça nada.
Desdêmona – O que tem essa porcaria de carta? Eu quero saber o segredo que escondem de mim e que está em suas cabeças.
Tia – Milena, vá embora.
Milena – Não sem antes dizer que o Marcelo te deixa pela Roberta. Foi ela quem roubou seu coração.
(Roberta vai embora correndo. Milena se retira triunfante. A avó está em cena. Entra Desdêmona fantasma. / Estão em cena as duas Desdêmonas, a avó e a tia. Thiago observa de longe)

Cena 12 – a morte
Thiago – O destino é mesmo cruel e irônico. Como eu. Se eu sou como ele, não posso me dar mal. Ao invés, subirei mais alto, no mais alto posto, maior do que aquele que me foi negado por esse infeliz. Depois da semente plantada, a árvore cresce para todos os lados. Do meu galho, cuido eu e ele vai até o céu.
(Entra Marcelo) Desdêmona - Não quero ouvir nenhuma palavra.
Marcelo – Não preciso mais de palavras. Nunca fui bom com as frases como queria você. No que sou bom, eu sou melhor que as letras. Sou rude, sou oco de compaixão neste momento.
Tia – Não, por favor, não.
Marcelo – (à tia) Quieta, que já me atrapalhou demais.
Tia – Corra Desdêmona.
Avó – Desdêmona, venha aqui.
Desdêmona fantasma – O que quer de novo?
Avó – Chegou a hora, enfim. Pegue a carta.
Desdêmona fantasma – O que tem isso afinal? (pega a carta)
Avó – É sua última sorte. Abra o envelope.
Marcelo – Abra a carta.
Desdêmona – Você é tirano e patife. Como pode fazer isso comigo?
Marcelo – Leia em voz alta.
Avó – Leia em voz alta, querida.
Desdêmona – Não leio.
Tia – Filha, a carta fui eu quem mandei. Se falasse você nunca acreditaria. Nunca, filha. Você estava cega de amor. Marcelo é bom, mas ciumento. Só isso. Eu disse para não ouvir. Marcelo, quantas vezes, eu tentei te dizer? Tudo isso, é nada, é semente plantada em lugar errado, por mau fazendeiro.
Marcelo – Tarde demais. Não tente ajudar, piora as coisas.
Tia – Pensei em fazer o certo. Quis acertar dessa vez. Leia, filha, leia. É uma carta de sua mãe.
Marcelo – Abra a carta.
Desdêmona – Não abro, traidor. Não abro.
Tia – Corra, filha, corra.
Desdêmona – Ele sai, não eu. Traidor, tirano, patife. Saia da minha casa. Saia. Saia... (Desdêmona está gritando, Marcelo a apunhala. O som cessa de vez. Após o silêncio, ouve-se a carta. Desdêmona fantasma está aos pés de Desdêmona viva.)
Desdêmona fantasma - CARTA